10 Contrafactuais

Existem situações em que gostaríamos de saber o que teria ocorrido, caso certas condições fossem diferentes daquelas que foram efetivamente observadas. Por exemplo, considere que a perna de um indivíduo é amputada em virtude de um erro de diagnóstico médico. Neste caso, o indivíduo tem o direito a ser indenizado por seus danos. Contudo, qual o valor da indenização? Para responder a esta pergunta, somos levados a questionar como seria a vida deste indivíduo caso não houvesse o erro de diagnóstico. Este tipo de pergunta é chamada de contrafactual.

Uma característica fundamental de contrafactuais é que estamos interessados em uma “realidade” distinta daquela que foi observada. Contudo, se só observamos uma realidade, como é possível aprender algo sobre “realidades distintas”? Por exemplo, se supomos que não houve um erro de diagnóstico médico, o que mais seria diferente? Nesta realidade alternativa, consideramos que não houve erro médico porque há um médico muito mais concentrado, competente, ético e com exames mais precisos? Ou estamos supondo apenas que características pontuais que o levaram ao erro não estão presentes e, assim, essencialmente é o mesmo médico tratando o paciente? Ainda que não há uma resposta única para esta pergunta, há um cenário que é comumente analisado. Neste supomos que a realidade alternativa é a mais próxima possível da observada dada a restrição que um determinado fato ocorreu diferentemente.

Neste sentido, resultados potenciais são um formalismo útil. Dentro deste formalismo, consideramos que 𝒱{\mathcal{V}} são as variáveis da “realidade observada”. Por outro lado, 𝒱𝐗=𝐱{\mathcal{V}}_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}} são as variáveis que seriam observadas quando 𝐗{\mathbf{X}} é fixado no valor 𝐱{\mathbf{x}}. Neste formalismo (Definição 4.7), consideramos que Y=gY(Pa(Y),UY)Y=g_{Y}(Pa^{*}(Y),U_{Y}) e Y𝐗=𝐱=gY(Pa(Y𝐗=𝐱),UY)Y_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}}=g_{Y}(Pa^{*}(Y_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}}),U_{Y}) Isto é, na realidade contrafactual, Y𝐗=𝐱Y_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}} e YY são gerados pelo mesmo mecanismo, gYg_{Y}. Além disso, os ruídos locais representados por UYU_{Y} são os mesmos em YY e Y𝐗=𝐱Y_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}}. Pode-se argumentar que a equivalência de mecanismos e de ruídos locais satisfaz a condição de que realidades contrafactuais devem ser tão próximas quanto possível da realidade observada.

Exemplo 4.28.

Considere que XX é a indicadora de que houve um erro médico e YY é a indicadora de que a perna do paciente não é amputada. Por simplicidade, vamos supor que estas são as únicas duas variáveis relevantes e que o grafo causal é 𝒢{\mathcal{G}} tal que XYX\rightarrow Y. Também considere que f(X=1)=ϵf(X=1)=\epsilon, f(Y=1|X=1)=p1f(Y=1|X=1)=p_{1}, e f(Y=1|X=0)=p0f(Y=1|X=0)=p_{0}, p0>p1p_{0}>p_{1}. Assim, o CM é (𝒢,f)({\mathcal{G}},f).

Para definir, um modelo de resultados potenciais, é necessário determinar um SCM (Definição 4.3). Uma possibilidade é escolher UX,UYU(0,1)U_{X},U_{Y}\sim U(0,1), gX(UX)𝕀(UXϵ)g_{X}(U_{X})\equiv{\mathbb{I}}(U_{X}\leq\epsilon), e gY(UY,X)𝕀(UYpX)g_{Y}(U_{Y},X)\equiv{\mathbb{I}}(U_{Y}\leq p_{X}). Podemos mostrar que este SCM representa o CM definido no parágrafo anterior:

f(X=1)\displaystyle f(X=1) =(𝕀(UXϵ))=ϵ\displaystyle={\mathbb{P}}({\mathbb{I}}(U_{X}\leq\epsilon))=\epsilon Definição 4.3,UXU(0,1),\displaystyle\text{\lx@cref{creftype~refnum}{def:scm}},U_{X}\sim U(0,1),
f(Y=1|X=x)\displaystyle f(Y=1|X=x) =(𝕀(UYpx))=px.\displaystyle={\mathbb{P}}({\mathbb{I}}(U_{Y}\leq p_{x}))=p_{x}.

Com base no modelo de resultados potenciais, podemos perguntar qual teria sido a probabilidade de que a perna do paciente não fosse amputada sem um erro médico, sabendo que observou-se o erro e a amputação: (YX=0|X=1,Y=1){\mathbb{P}}(Y_{X=0}|X=1,Y=1).

(YX=0=1|X=1,Y=0)\displaystyle{\mathbb{P}}(Y_{X=0}=1|X=1,Y=0) =(𝕀(UYp0)=1|𝕀(UXϵ)==1,𝕀(UY>p1)=1)\displaystyle={\mathbb{P}}({\mathbb{I}}(U_{Y}\leq p_{0})=1|{\mathbb{I}}(U_{X}% \leq\epsilon)==1,{\mathbb{I}}(U_{Y}>p_{1})=1)
=(UYp0|UXϵ,UY>p1)\displaystyle={\mathbb{P}}(U_{Y}\leq p_{0}|U_{X}\leq\epsilon,U_{Y}>p_{1})
=(UYp0|UY>p1)\displaystyle={\mathbb{P}}(U_{Y}\leq p_{0}|U_{Y}>p_{1})
=(p1<UYp0)(UY>p1)=p0p11p1\displaystyle=\frac{{\mathbb{P}}(p_{1}<U_{Y}\leq p_{0})}{{\mathbb{P}}(U_{Y}>p_% {1})}=\frac{p_{0}-p_{1}}{1-p_{1}}

Uma característica importante do Exemplo 4.28 é que a probabilidade contrafactual depende tanto da distribuição de UYU_{Y} quanto da funções gYg_{Y}. Estas quantidades não podem ser determinadas pelos dados. Em outras palavras, as probabilidades contrafactuais dependem fundamentalmente de suposições que não podem ser testadas. No Exemplo 4.28 definimos que gY(UY,X)=𝕀(UYpX)g_{Y}(U_{Y},X)={\mathbb{I}}(U_{Y}\leq p_{X}). Este acoplamento determina que todo paciente que não teve sua perna amputada com um erro médico, também não a teria sem o erro médico. Como nunca observamos ambas as situações para um mesmo paciente, esta afirmação não é testável. O Exemplo 4.29 mostra que a probabilidade contrafactual varia conforme o acoplamento utilizado.

Exemplo 4.29.

No Exemplo 4.28, considere que gY(UY,1)=𝕀(UYp1)g_{Y}(U_{Y},1)={\mathbb{I}}(U_{Y}\leq p_{1}) e gY(UY,0)=𝕀(UY1p0)g_{Y}(U_{Y},0)={\mathbb{I}}(U_{Y}\geq 1-p_{0}).

(YX=0=1|X=1,Y=0)\displaystyle{\mathbb{P}}(Y_{X=0}=1|X=1,Y=0) =(𝕀(UY1p0)=1|𝕀(UXϵ)==1,𝕀(UY>p1)=1)\displaystyle={\mathbb{P}}({\mathbb{I}}(U_{Y}\geq 1-p_{0})=1|{\mathbb{I}}(U_{X% }\leq\epsilon)==1,{\mathbb{I}}(U_{Y}>p_{1})=1)
=(UY1p0|UXϵ,UY>p1)\displaystyle={\mathbb{P}}(U_{Y}\geq 1-p_{0}|U_{X}\leq\epsilon,U_{Y}>p_{1})
=(UY>1p0|UY>p1)\displaystyle={\mathbb{P}}(U_{Y}>1-p_{0}|U_{Y}>p_{1})
=(UY>max(1p0,p1)(UY>p1)=min(p0,1p1)1p1\displaystyle=\frac{{\mathbb{P}}(U_{Y}>\max(1-p_{0},p_{1})}{{\mathbb{P}}(U_{Y}% >p_{1})}=\frac{\min(p_{0},1-p_{1})}{1-p_{1}}

Neste caso, gYg_{Y} induz a mema distribuição sobre (X,Y)(X,Y) que o acoplamento no Exemplo 4.28. Ainda assim, a probabilidade contrafactual obtida é diferente. Isto ocorre pois, ao contrário do Exemplo 4.28, a nova gYg_{Y} indica que é possível que um paciente tenha a perna amputada sem o erro médico e não a tenha com o erro.

De um ponto de vista operacional, o Teorema 4.30 abaixo provê um algoritmo para calcular probabilidades contrafactuais:

Teorema 4.30 (Cálculo contrafactual).
(𝐘𝐗=𝐱𝐲|𝐙=𝐳)\displaystyle{\mathbb{P}}({\mathbf{Y}}_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}}\leq{\mathbf% {y}}|{\mathbf{Z}}={\mathbf{z}}) =(𝐘𝐗=𝐱𝐲|𝕌)f(𝕌|𝐙=𝐳)𝑑𝕌\displaystyle=\int{\mathbb{P}}({\mathbf{Y}}_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}}\leq{% \mathbf{y}}|{\mathbb{U}})f({\mathbb{U}}|{\mathbf{Z}}={\mathbf{z}})d{\mathbb{U}}

O Teorema 4.30 indica que o cálculo de probabilidades contrafactuais pode ser dividido em duas etapas. Primeiramente, calcula-se a nova distribuição dos ruídos locais, 𝕌{\mathbb{U}}, após aprender que 𝐙=𝐳{\mathbf{Z}}={\mathbf{z}}, obtendo assim f(𝕌|𝐙=𝐳)f({\mathbb{U}}|{\mathbf{Z}}={\mathbf{z}}). A seguir, calcula-se (𝐘𝐗=𝐱𝐲){\mathbb{P}}({\mathbf{Y}}_{{\mathbf{X}}={\mathbf{x}}}\leq{\mathbf{y}}) utilizando-se que a distribuição de 𝕌{\mathbb{U}} é f(𝕌|𝐙=𝐳)f({\mathbb{U}}|{\mathbf{Z}}={\mathbf{z}}) ao invés de f(𝕌)f({\mathbb{U}}).

Na próxima seção, veremos uma aplicação mais detalhada de contrafactuais no Direito. Esta discussão é baseada em Stern2019.

10.1 Contrafactuais e Responsabilidade Civil

O art. 927 do Código Civil de 2002 determina que:

Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Este artigo institui a Responsabilidade Aquiliana, isto é o dever daquele que causa um dano de forma ilícita a reparar as vítimas. Sem entrar em detalhes sobre a lei, um elemento fundamental deste conceito é a reparação.

O que é a reparação? Esta pergunta é ainda mais complicada dado que o Direito somente pode exigir que esta reparação ocorra por meio de um pagamento em dinheiro. Neste sentido, uma posição comum é definir que reparação é o valor de pagamento que torna a vítima inteira, isto é, na condição em que ela estaria caso não tivesse sofrido o dano.

Para nossos fins, a parte central desta definição de reparação é que ela exige uma consideração contrafactual. Isto é, ela questiona qual teria sido a condição da vítima caso esta não tivesse sofrido o dano. Podemos avaliar esta questão com as ferramentas desenvolvidas na Seção 10.

Para tal, construíremos um modelo de resultados potenciais. Considere que 𝒱{\mathcal{V}} é o conjunto de todas as variáveis juridicamente relevantes. Dentre elas, II é a indicadora de que o causador do dano agiu de forma ilícita. Além disso, E𝒱E\subseteq{\mathcal{V}} é um conjunto de variáveis que foi observada e trazida como evidência à Justiça. Finalmente, U(𝒱,m)U({\mathcal{V}},m) é uma função de utilidade que indica o quão desejável é para a vítima obter o resultado 𝒱{\mathcal{V}} e, além disso, uma indenização monetária de mm. Dentro deste contexto, uma quantificação do dano é uma função, Q(E)+Q(E)\in\Re^{+}, que define uma compensação para cada possível evidência apresentada.

Dentro deste contexto, uma primeira pergunta é o quanto da evidência pode ser usada para quantificar o dano. Neste aspecto, há uma tensão importante entre previsibilidade e reparação (Fisher1990). Considere que um diário com a assinatura de Janis Joplin é destruído em um sebo antes da fama da cantora. Poderia a posterior fama de Joplin ser levada em consideração na reparação? De forma mais geral, quanto da evidência conhecida no momento do julgamento pode ser usada na quantificação do dano?

De uma perspectiva social, cada possível resposta apresenta vantagens e desvantagens. Por um lado, o uso de muita informação permite que seja possível colocar a vítima no presente o mais próximo da condição em que ela estaria caso o ato ilícito não tivesse ocorrido. Por outro lado, quanto mais informação é usada, mais imprevisível se torna o valor da reparação no momento em que o ilícito é cometido.

Formalmente, podemos imagimar ao menos três respostas para a pergunta levantada. A primeira resposta é de que toda evidência pode ser usada. Isto é, não há restrições sobre QQ. A segunda resposta é de que nenhuma evidência pode ser usada, isto é, QQ deve ser uma função constante. Finalmente, uma resposta intermediária é obtida supondo que QQ somente leva em consideração se a situação da vítima foi superior ou inferior àquela que ela poderia esperar sem o ilícito. Formalmente, tomando g(E)=𝕀(𝔼[U(𝒱,0)|E]>𝔼[U(𝒱X=0,0)])g(E)={\mathbb{I}}({\mathbb{E}}[U({\mathcal{V}},0)|E]>{\mathbb{E}}[U({\mathcal{% V}}_{X=0},0)]), temos que se g(E1)=g(E2)g(E_{1})=g(E_{2}), então Q(E1)=Q(E2)Q(E_{1})=Q(E_{2}). Em última análise, a escolha da resposta correta não é uma questão científica, mas de Direito. Contudo, utilizando contrafactuais podemos analisá-la e indicar os aspectos fundamentais envolvidos na escolha.

Um outro aspecto fundamental na quantificação de danos é a especificação de QQ. Para tal, há duas possíveis interpretações de reparação. Por um lado, pode-se entender que a reparação deve levar a vítima o mais próximo possível ao estado em que ela estaria sem o ato ilícito, levando em consideração toda a evidência disponível. Uma possível formalização deste raciocínio é:

Q=argminQ𝔼[(U(𝒱,Q(E))U(𝒱X=0,0))2]\displaystyle Q=\arg\min_{Q^{*}}{\mathbb{E}}[(U({\mathcal{V}},Q^{*}(E))-U({% \mathcal{V}}_{X=0},0))^{2}]

Por outro lado, pode-se entender que, no momento em que o ato ilícito foi cometido, a vítima deveria estar indiferente entre não sofrer o ilícito ou sofrê-lo e receber a indenização. Esta outra interpretação pode ser formalizada da seguinte forma:

Q=argminQ:𝔼[U(𝒱,Q)]=𝔼[U(𝒱X=0,0)]𝔼[(U(𝒱,Q(E))U(𝒱X=0,0))2]\displaystyle Q=\arg\min_{Q^{*}:{\mathbb{E}}[U({\mathcal{V}},Q^{*})]={\mathbb{% E}}[U({\mathcal{V}}_{X=0},0)]}{\mathbb{E}}[(U({\mathcal{V}},Q^{*}(E))-U({% \mathcal{V}}_{X=0},0))^{2}]

Finalmente, como estabelecer um modelo de resultados potenciais a partir de um modelo causal? Como vimos anteriormente, um mesmo CM  pode ser compatível com diversos SCM. Além disso, cada SCM pode levar a avaliações distintas de contrafactuais. Uma possível resposta é que o SCM deve ser estabelecido pelo perito. Contudo, o custo de um perito pode ser incompatível com o valor do pedido. Neste caso, algumas alternativas são supor que 𝒱{\mathcal{V}} e 𝒱X=0{\mathcal{V}}_{X=0} são independentes ou tomar a sua dependência de forma a minimizar 𝔼[(U(𝒱,0)U(𝒱X=0,0))2]{\mathbb{E}}[(U({\mathcal{V}},0)-U({\mathcal{V}}_{X=0},0))^{2}].

10.2 Exercícios

Exercício 4.31.

Com base na discussão levantada na Seção 10.1, discuta formas de reparação para o caso levantado no Exemplo 4.28.

Exercício 4.32.

Suponha que sem o ato ilícito, um paciente tem o tempo de sobrevivência dado pela acumulada F0F_{0}. Por outro lado, com o ato ilícito, seu tempo de sobrevivência é dado por F1F_{1}. Ocorrido o ilícito, o paciente falece após 1 ano. Discuta possíveis reparações para o paciente com base na Seção 10.1.