3.1. O Efeito de Aplicações Lipschitzianas sobre a Medida de Lebesgue

3.1.1 Notação.

Dado xnx\in\mathds{R}^{n}, escrevemos:

x=max{|xi|:i=1,,n},\|x\|_{\infty}=\max\big{\{}|x_{i}|:i=1,\ldots,n\big{\}},

e para x,ynx,y\in\mathds{R}^{n}, escrevemos:

d(x,y)=xy=max{|xiyi|:i=1,,n}.d_{\infty}(x,y)=\|x-y\|_{\infty}=\max\big{\{}|x_{i}-y_{i}|:i=1,\ldots,n\big{\}}.

Claramente se BB é um cubo nn-dimensional com aresta aa (veja Definição 1.4.22) então d(x,y)ad_{\infty}(x,y)\leq a, para todos x,yBx,y\in B. Provamos agora a seguinte recíproca para essa afirmação:

3.1.2 Lema.

Sejam AnA\subset\mathds{R}^{n} e a0a\geq 0 tais que d(x,y)ad_{\infty}(x,y)\leq a, para todos x,yAx,y\in A. Então AA está contido em um cubo nn-dimensional de aresta aa; em particular:

𝔪(A)an.\mathfrak{m}^{*}(A)\leq a^{n}.
Demonstração.

Se AA é vazio, não há nada para se mostrar. Senão, seja πi:n\pi_{i}:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R} a projeção sobre a ii-ésima coordenada e considere o conjunto Ai=πi(A)A_{i}=\pi_{i}(A). Temos |ts|a|t-s|\leq a, para todos t,sAit,s\in A_{i} e portanto supAiinfAia\sup A_{i}-\inf A_{i}\leq a; se ai=infAia_{i}=\inf A_{i}, segue que:

Ai[ai,ai+a]A_{i}\subset[a_{i},a_{i}+a]

e portanto:

Ai=1nAii=1n[ai,ai+a].A\subset\prod_{i=1}^{n}A_{i}\subset\prod_{i=1}^{n}[a_{i},a_{i}+a].\qed
3.1.3 Definição.

Seja ϕ:Xn\phi:X\to\mathds{R}^{n} uma função definida num subconjunto XX de m\mathds{R}^{m}. Dizemos que ϕ\phi é Lipschitziana se existe uma constante k0k\geq 0 tal que:

d(ϕ(x),ϕ(y))kd(x,y),d_{\infty}\big{(}\phi(x),\phi(y)\big{)}\leq k\,d_{\infty}(x,y),

para todos x,yXx,y\in X. A constante kk é dita uma constante de Lipschitz para a função ϕ\phi.

Claramente toda função Lipschitziana é (uniformemente) contínua.

3.1.4 Lema.

Seja AA um subconjunto de n\mathds{R}^{n}. Dado ε>0\varepsilon>0, existe um conjunto enumerável \mathcal{R} de cubos nn-dimensionais tal que ABBA\subset\bigcup_{B\in\mathcal{R}}B e B|B|𝔪(A)+ε\sum_{B\in\mathcal{R}}|B|\leq\mathfrak{m}^{*}(A)+\varepsilon.

Demonstração.

Pelo Lema 1.4.12 existe um aberto UU em n\mathds{R}^{n} contendo AA tal que 𝔪(U)𝔪(A)+ε\mathfrak{m}(U)\leq\mathfrak{m}^{*}(A)+\varepsilon e pelo Lema 1.4.23 existe um conjunto enumerável \mathcal{R} de cubos nn-dimensionais com interiores dois a dois disjuntos tal que U=BBU=\bigcup_{B\in\mathcal{R}}B. Daí:

B|B|=𝔪(U)𝔪(A)+ε.\sum_{B\in\mathcal{R}}|B|=\mathfrak{m}(U)\leq\mathfrak{m}^{*}(A)+\varepsilon.\qed
3.1.5 Proposição.

Seja ϕ:Xn\phi:X\to\mathds{R}^{n} uma função Lipschitziana com constante de Lipschitz k0k\geq 0, onde XX é um subconjunto de n\mathds{R}^{n}. Então, para todo subconjunto AA de XX, temos:

𝔪(ϕ(A))kn𝔪(A).\mathfrak{m}^{*}\big{(}\phi(A)\big{)}\leq k^{n}\mathfrak{m}^{*}(A).
Demonstração.

Dado ε>0\varepsilon>0 então, pelo Lema 3.1.4 existe um conjunto enumerável \mathcal{R} de cubos nn-dimensionais tal que ABBA\subset\bigcup_{B\in\mathcal{R}}B e:

B|B|𝔪(A)+ε.\sum_{B\in\mathcal{R}}|B|\leq\mathfrak{m}^{*}(A)+\varepsilon. (3.1.1)

Daí ϕ(A)Bϕ(BX)\phi(A)\subset\bigcup_{B\in\mathcal{R}}\phi(B\cap X) e portanto:

𝔪(ϕ(A))B𝔪(ϕ(BX)).\mathfrak{m}^{*}\big{(}\phi(A)\big{)}\leq\sum_{B\in\mathcal{R}}\mathfrak{m}^{*% }\big{(}\phi(B\cap X)\big{)}. (3.1.2)

Fixado um cubo BB\in\mathcal{R} então, se aa denota a aresta de BB, temos:

d(ϕ(x),ϕ(y))kd(x,y)ka,d_{\infty}\big{(}\phi(x),\phi(y)\big{)}\leq k\,d_{\infty}(x,y)\leq ka,

para todos x,yBXx,y\in B\cap X. Segue do Lema 3.1.2 que:

𝔪(ϕ(BX))(ka)n=kn|B|.\mathfrak{m}^{*}\big{(}\phi(B\cap X)\big{)}\leq(ka)^{n}=k^{n}|B|. (3.1.3)

De (3.1.1), (3.1.2) e (3.1.3) vem:

𝔪(ϕ(A))knB|B|kn(𝔪(A)+ε).\mathfrak{m}^{*}\big{(}\phi(A)\big{)}\leq k^{n}\sum_{B\in\mathcal{R}}|B|\leq k% ^{n}\big{(}\mathfrak{m}^{*}(A)+\varepsilon\big{)}.

A conclusão segue fazendo ε0\varepsilon\to 0. ∎

3.1.6 Corolário.

Se ϕ:Xn\phi:X\to\mathds{R}^{n} é uma função Lipschitziana definida num subconjunto XX de n\mathds{R}^{n} então ϕ\phi leva subconjuntos de XX de medida nula em subconjuntos de medida nula de n\mathds{R}^{n}.∎

3.1.7 Observação.

Recorde que toda aplicação linear T:mnT:\mathds{R}^{m}\to\mathds{R}^{n} é Lipschitziana. Mais explicitamente, se a norma da aplicação linear TT é definida por:

T=supx1T(x),\|T\|=\sup_{\|x\|_{\infty}\leq 1}\|T(x)\|_{\infty}, (3.1.4)

então:

T(x)Tx,\|T(x)\|_{\infty}\leq\|T\|\|x\|_{\infty},

para todo xmx\in\mathds{R}^{m}, donde segue facilmente que T\|T\| é uma constante de Lipschitz para TT. A finitude do supremo em (3.1.4) segue, por exemplo, do fato que a aplicação xT(x)x\mapsto\|T(x)\|_{\infty} é contínua e a bola {x:x1}\big{\{}x:\|x\|_{\infty}\leq 1\big{\}} é compacta.

3.1.8 Corolário.

Uma aplicação linear de n\mathds{R}^{n} em n\mathds{R}^{n} leva subconjuntos de medida nula de n\mathds{R}^{n} em subconjuntos de medida nula de n\mathds{R}^{n}.

Demonstração.

Segue do Corolário 3.1.6 e da Observação 3.1.7. ∎

3.1.9 Corolário.

Todo subespaço vetorial próprio de n\mathds{R}^{n} tem medida nula.

Demonstração.

Se VV é um subespaço vetorial próprio de n\mathds{R}^{n} então existe uma aplicação linear T:nnT:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} tal que T(n1×{0})=VT\big{(}\mathds{R}^{n-1}\times\{0\}\big{)}=V; de fato, podemos escolher uma aplicação linear TT que leva os n1n-1 primeiros vetores da base canônica de n\mathds{R}^{n} sobre uma base qualquer de VV (note que dim(V)n1\mathrm{dim}(V)\leq n-1). A conclusão segue do Corolário 1.4.7 e do Corolário 3.1.8. ∎

3.1.10 Definição.

Uma função ϕ:Xn\phi:X\to\mathds{R}^{n} definida num subconjunto XX de m\mathds{R}^{m} é dita localmente Lipschitziana se todo xXx\in X possui uma vizinhança VV em m\mathds{R}^{m} tal que a função ϕ|VX\phi|_{V\cap X} é Lipschitziana.

3.1.11 Proposição.

Se ϕ:Xn\phi:X\to\mathds{R}^{n} é uma função localmente Lipschitziana definida num subconjunto XX de n\mathds{R}^{n} então ϕ\phi leva subconjuntos de XX de medida nula em subconjuntos de medida nula de n\mathds{R}^{n}.

Demonstração.

Para cada xXx\in X seja UxU_{x} um aberto em n\mathds{R}^{n} contendo xx tal que a restrição de ϕ\phi a UxXU_{x}\cap X seja Lipschitziana. A cobertura aberta XxXUxX\subset\bigcup_{x\in X}U_{x} possui uma subcobertura enumerável Xi=1UxiX\subset\bigcup_{i=1}^{\infty}U_{x_{i}}. Agora, dado qualquer subconjunto AA de XX com 𝔪(A)=0\mathfrak{m}(A)=0, segue do Corolário 3.1.6 que:

𝔪(ϕ(UxiA))=0,\mathfrak{m}\big{(}\phi(U_{x_{i}}\cap A)\big{)}=0,

para todo ii. A conclusão é obtida agora da igualdade:

ϕ(A)=i=1ϕ(UxiA).\phi(A)=\bigcup_{i=1}^{\infty}\phi(U_{x_{i}}\cap A).\qed
3.1.12 Proposição.

Seja ϕ:Xn\phi:X\to\mathds{R}^{n} uma função localmente Lipschitziana definida num subconjunto XX de n\mathds{R}^{n}. Então, para todo subconjunto mensurável AA de n\mathds{R}^{n} contido em XX, temos que ϕ(A)\phi(A) é mensurável.

Demonstração.

Como AA é mensurável, pelo Corolário 1.4.31, existe um subconjunto WW de n\mathds{R}^{n} de tipo FσF_{\sigma} com WAW\subset A e 𝔪(AW)=0\mathfrak{m}(A\setminus W)=0; temos então que A=WNA=W\cup N, onde WW é um FσF_{\sigma} e N=AWN=A\setminus W tem medida nula. Como ϕ\phi é localmente Lipschitziana então ϕ\phi é localmente contínua e portanto contínua; daí ϕ\phi leva compactos em compactos. Como WW é uma união enumerável de fechados e todo fechado é uma união enumerável de compactos, segue que WW é uma união enumerável de compactos; portanto também ϕ(W)\phi(W) é uma união enumerável de compactos. Temos então:

ϕ(A)=ϕ(W)ϕ(N),\phi(A)=\phi(W)\cup\phi(N),

onde ϕ(W)\phi(W) é um FσF_{\sigma} e ϕ(N)\phi(N) (é mensurável e) tem medida nula, pela Proposição 3.1.11. ∎

3.1.13 Corolário.

Se T:nnT:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} é uma aplicação linear então TT leva subconjuntos mensuráveis de n\mathds{R}^{n} em subconjuntos mensuráveis de n\mathds{R}^{n}.

Demonstração.

Segue da Observação 3.1.7 e da Proposição 3.1.12. ∎