3.2. O Efeito de Aplicações Lineares sobre a Medida de Lebesgue

O objetivo desta seção é provar o seguinte:

3.2.1 Teorema.

Seja T:nnT:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} uma aplicação linear. Para todo subconjunto mensurável AA de n\mathds{R}^{n} temos que T(A)T(A) é mensurável e:

𝔪(T(A))=|detT|𝔪(A).\mathfrak{m}\big{(}T(A)\big{)}=|\det T|\,\mathfrak{m}(A). (3.2.1)

Em (3.2.1) denotamos por detT\det T o determinante de TT, ou seja, o determinante da matriz que representa TT na base canônica de n\mathds{R}^{n}. No que segue, sempre identificaremos aplicações lineares de m\mathds{R}^{m} em n\mathds{R}^{n} com as respectivas matrizes n×mn\times m que as representam com respeito às bases canônicas.

O restante da seção é dedicado à demonstração do Teorema 3.2.1. Note que a mensurabilidade de T(A)T(A) já é garantida pelo Corolário 3.1.13. Note também que se TT não é inversível então o Teorema 3.2.1 segue do Corolário 3.1.9, já que a imagem de TT é um subespaço próprio de n\mathds{R}^{n} e detT=0\det T=0. Se TT é inversível, a estratégia da prova do Teorema 3.2.1 é a seguinte. Inicialmente, observamos que se T1:nnT_{1}:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} e T2:nnT_{2}:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} são aplicações lineares tais que a igualdade (3.2.1) vale para T=T1T=T_{1} e para T=T2T=T_{2}, para todo subconjunto mensurável AA de n\mathds{R}^{n}, então a igualdade (3.2.1) também vale para T=T1T2T=T_{1}T_{2}; de fato, dado AnA\subset\mathds{R}^{n} mensurável, temos:

𝔪((T1T2)(A))=|detT1|𝔪(T2(A))=|detT1||detT2|𝔪(A)=|det(T1T2)|𝔪(A).\mathfrak{m}\big{(}(T_{1}T_{2})(A)\big{)}=|\det T_{1}|\,\mathfrak{m}\big{(}T_{% 2}(A)\big{)}=|\det T_{1}|\,|\det T_{2}|\,\mathfrak{m}(A)\\ =|\det(T_{1}T_{2})|\,\mathfrak{m}(A).

A seguir, selecionamos alguns tipos de aplicações lineares que chamaremos de elementares; mostraremos então que a igualdade (3.2.1) vale para aplicações lineares elementares e que toda aplicação linear inversível pode ser escrita como um produto de aplicações lineares elementares.

3.2.2 Definição.

Uma aplicação linear E:nnE:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} é dita elementar quando é de um dos seguintes tipos:

  • tipo 1.

    E=Li,j;cE=L_{i,j;c}, onde i,j=1,,ni,j=1,\ldots,n são distintos, cc\in\mathds{R} e:

    Li,j;c(x1,,xi,,xj,,xn)=(x1,,xi+cxj,,xj,,xn);L_{i,j;c}(x_{1},\ldots,x_{i},\ldots,x_{j},\ldots,x_{n})=(x_{1},\ldots,x_{i}+cx% _{j},\ldots,x_{j},\ldots,x_{n}); (3.2.2)
  • tipo 2.

    E=σ^E=\widehat{\sigma}, onde σ:{1,,n}{1,,n}\sigma:\{1,\ldots,n\}\to\{1,\ldots,n\} é uma bijeção e:

    σ^(x1,,xn)=(xσ(1),,xσ(n));\widehat{\sigma}(x_{1},\ldots,x_{n})=(x_{\sigma(1)},\ldots,x_{\sigma(n)}); (3.2.3)
  • tipo 3.

    E=DλE=D_{\lambda}, onde λ=(λ1,,λn)n\lambda=(\lambda_{1},\ldots,\lambda_{n})\in\mathds{R}^{n}, λi0\lambda_{i}\neq 0 para i=1,,ni=1,\ldots,n e:

    Dλ(x1,,xn)=(λ1x1,,λnxn).D_{\lambda}(x_{1},\ldots,x_{n})=(\lambda_{1}x_{1},\ldots,\lambda_{n}x_{n}). (3.2.4)

Obviamente as expressões (3.2.2), (3.2.3) e (3.2.4) definem isomorfismos lineares de n\mathds{R}^{n}; em (3.2.2) escrevemos a definição de Li,j;cL_{i,j;c} assumindo que i<ji<j, mas obviamente uma fórmula análoga define Li,j;cL_{i,j;c} se i>ji>j. O efeito da multiplicação à esquerda de uma matriz TT por uma matriz que representa uma aplicação linear elementar EE nos dá o que chamamos de uma transformação elementar de matrizes; mais explicitamente, se TT é uma matriz n×nn\times n cujas linhas são vetores 1,,nn\ell_{1},\ldots,\ell_{n}\in\mathds{R}^{n} e se EE é uma aplicação linear elementar então ETET é a matriz cujas linhas são:

  • 1,,i+cj,,j,,n\ell_{1},\ldots,\ell_{i}+c\ell_{j},\ldots,\ell_{j},\ldots,\ell_{n}, se E=Li,j;cE=L_{i,j;c};

  • σ(1),,σ(n)\ell_{\sigma(1)},\ldots,\ell_{\sigma(n)}, se E=σ^E=\widehat{\sigma};

  • λ11,,λnn\lambda_{1}\ell_{1},\ldots,\lambda_{n}\ell_{n}, se E=DλE=D_{\lambda}.

As transformações elementares de matrizes associadas à multicação à esquerda por uma aplicação elementar de tipos 1, 2 e 3 serão respectivamente chamadas de transformações elementares de tipos 1, 2 e 3.

O seguinte resultado é padrão em textos elementares de Álgebra Linear.

3.2.3 Lema.

Se T:nnT:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} é uma aplicação linear inversível então existe uma seqüência finita de transformações elementares de matrizes que leva TT até a matriz identidade.

Demonstração.

Fazemos uma descrição sucinta do algorítmo que é conhecido como escalonamento de matrizes. Em primeiro lugar, como TT é inversível então algum elemento da primeira coluna de TT é não nulo; realizando uma transformação elementar de tipo 2, podemos assumir que o elemento T11T_{11} é não nulo e depois realizando uma transformação elementar de tipo 3 podemos assumir que T11=1T_{11}=1. Agora, uma seqüência de n1n-1 transformações elementares de tipo 1 nos permite anular os elementos Tj1T_{j1}, com j=2,,nj=2,\ldots,n. Nesse ponto, a primeira coluna de TT coincide com o primeiro vetor da base canônica de n\mathds{R}^{n}; daí a submatriz de TT obtida removendo a primeira linha e a primeira coluna é inversível e podemos portanto repetir o algorítmo recursivamente na mesma. Obteremos então uma matriz TT triangular superior em que todos os elementos da diagonal são iguais a 11. Podemos agora realizar uma seqüência de n(n1)2\frac{n(n-1)}{2} transformações elementares de tipo 1 para anular os elementos de TT que estão acima da diagonal, obtendo assim a matriz identidade. ∎

3.2.4 Corolário.

Toda aplicação linear inversível T:nnT:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} é um produto de aplicações lineares elementares.

Demonstração.

Segue do Lema 3.2.3 que existem aplicações lineares elementares E1E_{1}, …, EkE_{k} de modo que E1EkTE_{1}\cdots E_{k}T é igual à matriz identidade. Daí T=Ek1E11T=E_{k}^{-1}\cdots E_{1}^{-1}. A conclusão segue da observação simples de que a inversa de uma aplicação linear elementar é novamente uma aplicação linear elementar (de mesmo tipo). ∎

Em vista do Corolário 3.2.4 e das observações feitas anteriormente nesta seção, temos que a demonstração do Teorema 3.2.1 ficará concluída assim que demonstrarmos o seguinte:

3.2.5 Lema.

Se T:nnT:\mathds{R}^{n}\to\mathds{R}^{n} é uma aplicação linear elementar então a igualdade (3.2.1) vale para todo subconjunto mensurável AA de n\mathds{R}^{n}.

Demonstração.

Se TT é de tipo 2 ou 3 então a tese do lema segue respectivamente dos resultados dos Exercícios 1.11 e 1.12 (note que as aplicações lineares elementares de tipo 2 tem determinante igual a ±1\pm 1). Resta então considerar o caso em que TT é uma aplicação linear elementar de tipo 1. É fácil verificar que se σ:{1,,n}{1,,n}\sigma:\{1,\ldots,n\}\to\{1,\ldots,n\} é uma bijeção então:

σ^1Li,j;cσ^=Lσ(i),σ(j);c,\widehat{\sigma}^{-1}L_{i,j;c}\,\widehat{\sigma}=L_{\sigma(i),\sigma(j);c},

para todos i,j=1,,ni,j=1,\ldots,n distintos e todo cc\in\mathds{R}. Podemos então reduzir a demonstração do lema apenas ao caso em que T=Ln,1;cT=L_{n,1;c}, cc\in\mathds{R}. No que segue, identificamos n\mathds{R}^{n} com o produto n1×\mathds{R}^{n-1}\times\mathds{R} e usamos a notação da Seção 2.8; a aplicação TT escreve-se na forma:

T(x,y)=(x,y+cx1),xn1,y.T(x,y)=(x,y+cx_{1}),\quad x\in\mathds{R}^{n-1},\ y\in\mathds{R}.

Dado AnA\subset\mathds{R}^{n} então para todo xn1x\in\mathds{R}^{n-1}, a fatia vertical T(A)xT(A)_{x} do conjunto T(A)T(A) coincide com a translação Ax+cx1A_{x}+cx_{1} da fatia vertical AxA_{x} de AA. Se AA é mensurável, temos que T(A)T(A) também é mensurável (vide Corolário 3.1.13); segue então da Proposição 2.8.3 que:

𝔪(T(A))=n1𝔪(T(A)x)d𝔪(x)=n1𝔪(Ax+cx1)d𝔪(x)=n1𝔪(Ax)d𝔪(x)=𝔪(A),\mathfrak{m}\big{(}T(A)\big{)}=\int_{\mathds{R}^{n-1}}\mathfrak{m}\big{(}T(A)_% {x}\big{)}\,\mathrm{d}\mathfrak{m}(x)=\int_{\mathds{R}^{n-1}}\mathfrak{m}(A_{x% }+cx_{1})\,\mathrm{d}\mathfrak{m}(x)\\ =\int_{\mathds{R}^{n-1}}\mathfrak{m}(A_{x})\,\mathrm{d}\mathfrak{m}(x)=% \mathfrak{m}(A),

onde na terceira igualdade usamos o Lema 1.4.10. Como TT é uma matriz triangular com elementos da diagonal iguais a 11, temos que detT=1\det T=1 e portanto a igualdade (3.2.1) fica demonstrada. ∎