5.3. Medidas Exteriores e o Teorema da Extensão
A estratégia que nós usamos na Seção 1.4 para construir a medida de Lebesgue em foi a seguinte: nós definimos inicialmente a medida exterior de Lebesgue (que não é sequer uma medida finitamente aditiva) e depois uma -álgebra de partes de restrita a qual a medida exterior é uma medida. Essa estratégia trata-se na verdade de um caso particular de um procedimento geral. Nesta seção nós definiremos o conceito geral de medida exterior e mostraremos que a toda medida exterior pode-se associar naturalmente um -anel restrita ao qual a medida exterior é uma medida.
Começamos definindo as classes de conjuntos que servirão como domínio para as medidas exteriores.
5.3.1 Definição.
Uma classe de conjuntos é dita um -anel hereditário se é não vazia e satisfaz as seguintes condições:
-
(a)
se e então ;
-
(b)
se é uma seqüência de elementos de então .
Evidentemente todo -anel hereditário é um -anel.
5.3.2 Exemplo.
Dado um conjunto arbitrário então a coleção de todas as partes de é um -anel hereditário. A coleção de todos os subconjuntos enumeráveis de também é um -anel hereditário. Note que se é um -anel hereditário contido em então se e somente se .
5.3.3 Definição.
Seja um -anel hereditário. Uma medida exterior em é uma função satisfazendo as seguintes condições:
-
(a)
;
-
(b)
(monotonicidade) se e então ;
-
(c)
(-subaditividade) se é uma seqüência de elementos de então:
(5.3.1)
5.3.4 Exemplo.
Usando a Proposição 1.4.53 como inspiração nós damos a seguinte:
5.3.5 Definição.
Sejam um -anel hereditário e uma medida exterior. Um conjunto é dito -mensurável se para todo vale a igualdade:
Como , temos , para todos e portanto (5.3.2) é na verdade equivalente a:
5.3.6 Observação.
Se denota a medida exterior de Lebesgue então segue da Proposição 1.4.53 que os conjuntos -mensuráveis são precisamente os subconjuntos Lebesgue mensuráveis de .
5.3.7 Teorema.
Sejam um -anel hereditário e uma medida exterior. Então:
-
(a)
a coleção de todos os conjuntos -mensuráveis é um -anel;
-
(b)
dados e uma seqüência de elementos dois a dois disjuntos de então:
(5.3.3) -
(c)
a restrição de a é uma medida -aditiva;
-
(d)
se é tal que então .
Demonstração.
Seja um conjunto arbitrário tal que , para todo (tome, por exemplo, ). Convencionando que complementares são sempre tomados com respeito a , podemos reescrever a condição (5.3.2) na forma mais conveniente:
A demonstração do teorema será dividida em vários passos.
-
Passo 1.
Se então .
-
Passo 2.
Se , e então:
(5.3.6)Como e , temos:
onde na última igualdade usamos que .
-
Passo 3.
Se e então:
Basta tomar em (5.3.6).
-
Passo 4.
Se e então .
-
Passo 5.
Se então .
-
Passo 6.
Se é uma seqüência de elementos dois a dois disjuntos de então .
-
Passo 7.
Se é uma seqüência em então .
-
Passo 8.
O item (a) da tese do teorema vale.
-
Passo 9.
O item (b) da tese do teorema vale.
-
Passo 10.
O item (c) da tese do teorema vale.
Basta fazer em (5.3.3).
-
Passo 11.
O item (d) da tese do teorema vale.
Sejam com e . Segue da monotonicidade de que:
Logo é -mensurável.∎
5.3.8 Observação.
5.3.9 Exemplo.
É bem possível que o -anel de conjuntos -mensuráveis associado a uma medida exterior seja completamente trivial. De fato, seja um conjunto arbitrário e seja o -anel hereditário constituído pelos subconjuntos enumeráveis de . Defina fazendo:
onde denota o número de elementos de . É fácil ver que é uma medida exterior em . Seja com e ; podemos então escolher um ponto e um ponto . Tomando então:
donde vemos que não é -mensurável. Concluímos então que, se é enumerável (de modo que ) então a -álgebra de conjuntos -mensuráveis é igual a ; se é não enumerável então o -anel de conjuntos -mensuráveis é .
5.3.10 Definição.
Se é uma classe de conjuntos arbitrária então o -anel hereditário gerado por é o menor -anel hereditário que contém , i.e., é um -anel hereditário tal que:
-
(1)
;
-
(2)
se é um -anel hereditário tal que então .
Dizemos também que é um conjunto de geradores para o -anel hereditário .
A existência e unicidade do -anel hereditário gerado por uma classe de conjuntos pode ser demonstrada usando exatamente o mesmo roteiro que foi descrito nos Exercícios 1.22, 5.6, 5.7 e 5.17. No entanto, nós mostraremos a existência do -anel hereditário gerado por exibindo explicitamente esse -anel hereditário (a unicidade do -anel hereditário gerado por é evidente). Se então o -anel hereditário gerado por é ; senão, temos o seguinte:
5.3.11 Lema.
Seja uma classe de conjuntos não vazia. O -anel hereditário gerado por é igual a:
Demonstração.
Pelo resultado do Exercício 5.20, é um -anel que contém . Obviamente, se e então , de modo que é um -anel hereditário que contém . Para verificar a condição (2) que aparece na Definição 5.3.10, observe que se é um -anel hereditário que contém então , para toda seqüência de elementos de ; logo todo subconjunto de está em , donde . ∎
5.3.12 Exemplo.
Seja uma classe de conjuntos tal que e seja dada uma aplicação (não necessariamente uma medida) tal que . Seja (veja (5.3.12)) o -anel hereditário gerado por . Vamos definir uma medida exterior em associada a . Para cada , seja:
e defina:
Evidentemente, , para todo (note que , já que ). Observe também que para todo , temos:
de fato, basta tomar e para todo para ver que está em . Vamos mostrar que é uma medida exterior em . De (5.3.13) segue que . Se e então , donde , provando a monotonicidade de . Finalmente, provemos a -subaditividade de . Seja uma seqüência em . Dado então para todo existe uma seqüência em tal que:
Daí e ; portanto:
Como é arbitrário, a -subaditividade de segue.
5.3.13 Definição.
Seja uma classe de conjuntos tal que e seja dada uma aplicação (não necessariamente uma medida) tal que . Se denota o -anel hereditário gerado por então a medida exterior definida como no Exemplo 5.3.12 é chamada a medida exterior determinada por .
5.3.14 Exemplo.
Se é a classe dos blocos retangulares -dimensionais e se é a aplicação que associa a cada bloco retangular -dimensional seu volume então o -anel hereditário gerado por é e a medida exterior determinada por coincide com a medida exterior de Lebesgue em .
Observamos que, mesmo se é uma medida, é possível que tenhamos uma desigualdade estrita em (5.3.13) (veja Exercício 5.22). No entanto, temos o seguinte:
5.3.15 Lema.
Seja um semi-anel e uma medida em . Denote por o -anel hereditário gerado por e por a medida exterior determinada por . Então:
-
(a)
, para todo ;
-
(b)
todo elemento de é -mensurável.
Demonstração.
Seja o anel gerado por e seja a única medida em que estende (veja Teorema 5.1.23). Nós vamos mostrar que , para todo ; isso implicará em particular que o item (a) vale. Seja e sejam dois a dois disjuntos de modo que (veja Lema 5.1.21). Tomando para concluímos que:
Por outro lado, se é uma seqüência em tal que então segue do item (f) do Lema 5.1.6 aplicado à medida que:
donde . Provamos então que . Seja agora e provemos que é -mensurável. Dado arbitrariamente, devemos verificar que . Para isso, é suficiente mostrar que para toda seqüência em com vale a desigualdade:
Temos e , para todo e portanto:
daí:
Como e , segue da monotonicidade e da -subaditividade de que:
De (5.3.15) e (5.3.16) segue (5.3.14), o que prova que é -mensurável. ∎
5.3.16 Teorema (teorema da extensão).
Seja uma medida num semi-anel . Então estende-se a uma medida no -anel gerado por ; se é -finita então essa extensão é única e -finita.
Demonstração.
Seja a medida exterior determinada por ; pelo Teorema 5.3.7, a coleção dos conjuntos -mensuráveis é um -anel e a restrição de a é uma medida. Mas, pelo Lema 5.3.15, contém e é uma extensão de ; logo contém o -anel gerado por e a restrição de a esse -anel é uma medida que estende . Se é -finita então essa extensão é única e -finita, pelo Corolário 5.2.13. ∎
5.3.17 Exemplo.
Seja o semi-anel constituído pelos intervalos da forma , (veja (5.1.5)) e seja definida por , para todos com . Segue da Proposição 5.1.32 que é uma medida em . O -anel gerado por é precisamente a -álgebra de Borel de (veja Exercício 5.9). Como é finita (e portanto -finita), o Teorema 5.3.16 nos diz que estende-se de modo único a uma medida em . Note que a medida de Lebesgue construída na Seção 1.4 restrita ao -anel é uma medida em que estende . Concluímos então que a restrição da medida de Lebesgue a é precisamente a única extensão da medida ao -anel .
5.3.18 Exemplo.
Sejam o semi-anel constituído pelos intervalos da forma , (veja (5.1.5)), uma função crescente e contínua à direita e definida por , para todos com . Segue da Proposição 5.1.32 que é uma medida em . Como é finita (e portanto -finita), o Teorema 5.3.16 nos diz que estende-se de modo único a uma medida (também -finita) no -anel gerado por . Vamos denotar essa extensão de também por . A medida é chamada a medida de Lebesgue–Stieltjes associada à função crescente e contínua à direita . Note que se é uma medida arbitrária que seja finita sobre intervalos limitados então a Proposição 5.1.16 nos diz que existe uma função crescente tal que ; a função é única, a menos da possível adição de constantes. Como é uma medida -aditiva, a Proposição 5.1.32 nos diz que é contínua à direita. Temos portanto que é a única extensão de a . Concluímos então que toda medida em que seja finita sobre intervalos limitados é a medida de Lebesgue–Stieltjes associada a alguma função crescente e contínua à direita ; a função é única, a menos da possível adição de constantes.
Note que se é uma medida num semi-anel então a extensão de que construímos está definida num -anel que pode ser maior do que o -anel gerado por . Por exemplo, se e são definidos como no Exemplo 5.3.17 então o -anel gerado por é a -álgebra de Borel da reta, mas o -anel de conjuntos -mensuráveis coincide com a -álgebra de conjuntos Lebesgue mensuráveis (veja Exercício 5.24 e Observação 5.3.6).
Vamos agora investigar um pouco mais a fundo o -anel e a extensão de definida em .
5.3.19 Lema.
Sejam um semi-anel, uma medida em , o -anel hereditário gerado por , a medida exterior determinada por , o -anel de conjuntos -mensuráveis e o -anel gerado por . Então:
-
(a)
para todo existe tal que e ;
-
(b)
se é -finito com respeito à medida então existem tais que , e .
Demonstração.
Começamos provando o item (a). Seja . Para todo existe uma seqüência em tal que e ; se então , e da -subaditividade de vem:
Tomando então , e:
para todo ; daí , o que prova o item (a). Passemos à prova do item (b). Seja um conjunto -finito com respeito à medida . Existe então uma seqüência em com e , para todo . Para cada , como , o item (a) nos dá com e . Como , é uma medida e , obtemos:
para todo . Seja . Evidentemente:
além do mais:
e portanto:
Vamos agora mostrar a existência de com e . Como , o item (a) nos dá com e:
Tome ; temos que e . Além do mais, e portanto . Isso completa a demonstração. ∎
5.3.20 Observação.
Vimos no Exemplo 5.2.14 que uma medida não -finita num semi-anel pode admitir extensões -finitas para o -anel gerado por . No entanto, se consideramos apenas a forma específica de construir extensões que foi desenvolvida nesta seção então temos o seguinte:
5.3.21 Lema.
Sob as condições do Lema 5.3.19, as seguintes afirmações são equivalentes:
-
(a)
a medida é -finita;
-
(b)
a medida é -finita;
-
(c)
a medida é -finita.
Demonstração.
-
(a)(b).
Segue da Observação 5.2.9.
-
(b)(c).
Dado então e portanto está contido numa união enumerável de elementos de ; segue então que está contido num elemento de . A conclusão é obtida observando que todo elemento de está contido numa união enumerável de elementos de de medida finita.
-
(c)(a).
Dado então e portanto existe uma seqüência em tal que e , para todo . Pela definição de , se então está contido numa união enumerável de elementos de de medida finita; logo está contido numa união enumerável de elementos de de medida finita.∎
5.3.22 Exemplo.
Seja um conjunto não vazio. Considere o semi-anel e a medida definida por e . Temos que o -anel gerado por é igual a e o -anel hereditário gerado por é igual a . É fácil ver que a medida exterior determinada por é dada por e , para todo não vazio. Temos então que o -anel de conjuntos -mensuráveis é igual a . Esse exemplo ilustra a necessidade da hipótese de -finitude no item (b) do Lema 5.3.19.
5.3.1. Completamento de medidas
Seja uma medida num -anel . É perfeitamente possível que exista um conjunto com tal que nem todo subconjunto de está em .
5.3.23 Definição.
Uma medida num -anel é dita completa se para todo com e para todo temos .
5.3.24 Proposição.
Seja uma medida exterior num -anel hereditário . Se denota a coleção dos conjuntos -mensuráveis então a medida é completa.
Demonstração.
Segue diretamente do item (d) do Teorema 5.3.7. ∎
5.3.25 Lema.
Seja uma medida num -anel . A classe de conjuntos:
é um -anel que contém e existe uma única medida em que estende . A medida é a menor extensão completa de , no sentido que:
-
•
é uma medida completa;
-
•
se é uma medida completa num -anel contendo e se estende então contém e estende .
Demonstração.
Evidentemente . Seja uma seqüência em , onde para cada , e existe com e . Temos:
já que , e:
Sejam , com , , , e . Se então e:
podemos então escrever:
onde . É fácil ver que . Como e , segue que . Isso prova que é um -anel. Se é uma medida em que estende então:
para todos , , com ; daí:
para todos , , com . Isso prova a unicidade de ; para provar a existência, nós usaremos a igualdade (5.3.18) para definir em . Para verificar que está de fato bem definida, devemos mostrar que , sempre que , , , e . Temos:
donde ; segue então do resultado do Exercício 5.12 que . Concluímos que está bem definida e é claro que estende . Para verificar que é uma medida em , seja uma seqüência de elementos dois a dois disjuntos de , onde para cada , e existe com e . Temos:
o que prova que é uma medida. Vejamos que é completa. Sejam dados , com e ; daí . Se é um subconjunto de então , onde , e . Logo e a medida é completa. Finalmente, seja uma medida completa que estende , definida num -anel . Dados , com então e ; como é completa e , temos e portanto . Isso prova que contém . Como a restrição de a é uma medida em que estende , vemos que essa restrição deve coincidir com ; logo é uma extensão de . Isso completa a demonstração. ∎
5.3.26 Definição.
A medida cuja existência e unicidade é garantida pelo Lema 5.3.25 é chamada o completamento da medida .
5.3.27 Observação.
Se é um espaço de medida (i.e., é um conjunto, é uma -álgebra de partes de e é uma medida em ) e se é o completamento de então é uma -álgebra de partes de , já que é um -anel e (veja Exercício 5.3). Logo também é um espaço de medida; nós dizemos então que é o completamento de .
5.3.28 Proposição.
Sob as condições do Lema 5.3.19, se a medida é -finita então a medida é o completamento da medida .
Demonstração.
Pela Proposição 5.3.24, a medida é uma extensão completa de e portanto é uma extensão do completamento de . Para mostrar que é o completamento de , devemos verificar que para todo existem e com e . Como é -finita, temos que é -finito com respeito a (veja Lema 5.3.21) e portanto, pelo Lema 5.3.19, existe com e . Tome , de modo que . Aplicando novamente o Lema 5.3.19 obtemos com e . Isso completa a demonstração. ∎
Se e são definidos como no Exemplo 5.3.17 e se é a medida exterior determinada por então a -álgebra de conjuntos -mensuráveis coincide com a -álgebra de subconjuntos Lebesgue mensuráveis da reta e a restrição de a coincide exatamente com a medida de Lebesgue . Temos duas maneiras de verificar a validade dessa afirmação. Uma delas segue da Observação 5.3.6 usando o resultado do Exercício 5.24. A outra é a seguinte; vimos no Exemplo 5.3.17 que se é o -anel gerado por então coincide com a -álgebra de Borel de e a restrição de a coincide com a restrição da medida de Lebesgue a . A Proposição 5.3.28 nos diz que é o completamento de e o resultado do Exercício 1.17 nos diz que a medida de Lebesgue é o completamento da restrição da medida de Lebesgue à -álgebra de Borel. Logo é precisamente a medida de Lebesgue.
Vemos então que a medida de Lebesgue na reta poderia ser introduzida usando apenas a teoria desenvolvida neste capítulo, sem que nenhuma menção fosse feita a resultados do Capítulo 1. De fato, podemos definir e como no Exemplo 5.3.17, tomar a única extensão de a uma medida no -anel gerado por (Teorema 5.3.16) e depois tomar o completamento dessa extensão; esse completamento é exatamente a medida de Lebesgue em . Alternativamente, consideramos a medida exterior determinada por e tomamos a restrição de ao -anel de conjuntos -mensuráveis; o resultado também é a medida de Lebesgue.