Capítulo 5 O Modelo em 2 Dimensões: Dualidade

Neste capítulo e no próximo, vamos tratar do que ocorre em p=pcp=p_{c}. Em 2 dimensões, objeto deste capítulo, a auto-dualidade da rede 2\mathbb{Z}^{2} permite mostrar que pc=1/2p_{c}=1/2 e θ(pc)=0\theta(p_{c})=0, o que estabelece a continuidade de θ(p)\theta(p) em todo o intervalo [0,1][0,1]. Além da dualidade da rede bidimensional, outros ingredientes da prova são o decaimento exponencial da distribuição do raio de CC em p<pcp<p_{c} (Teorema 3.1) e a unicidade do aglomerado infinito em θ(p)>0\theta(p)>0 (Teorema 4.1).

Consideremos de novo, como na demonstração da Proposição 1.2.2 (na página 1.2.2), a rede bidimensional dual de 2\mathbb{Z}^{2},

2=2+{1/2,1/2}.\mathbb{Z}^{2}_{\ast}=\mathbb{Z}^{2}+\{1/2,1/2\}.

2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} é isomorfa a 2\mathbb{Z}^{2} (por isto dizemos que 2\mathbb{Z}^{2} é auto-dual). Este fato é crucial para o que se segue. Outro fato crucial, que já usamos na demonstração da Proposição 1.2.2, é a seguinte propriedade geométrica de 2\mathbb{Z}^{2}.

Proposição 5.1

Seja GG um subgrafo conexo finito de 2\mathbb{Z}^{2}. Existe um único circuito Γ\Gamma de 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} contendo GG com a propriedade de que todo elo de Γ\Gamma cruza um elo de ΔG\Delta G, a fronteira de GG (isto é, os elos de 2\G\mathbb{Z}^{2}\backslash G que incidem em pelo menos um sítio de GG).

Teorema 5.1

Em duas dimensões,

pc=1/2eθ(pc)=0.\displaystyle p_{c}=1/2\quad\mbox{e}\quad\theta(p_{c})=0.

O Teorema 5.1 será provado por meio dos dois seguintes lemas.

Lema 5.1

Em duas dimensões,

θ(1/2)=0.\displaystyle\theta(1/2)=0.
Observação 5.1

Este resultado tem a conseqüência imediata que em dimensão 2

pc1/2.p_{c}\geq 1/2.
Lema 5.2

Em duas dimensões,

pc1/2.\displaystyle p_{c}\leq 1/2.

A heurística para a validade do primeiro lema é que, se θ(1/2)>0\theta(1/2)>0, então teremos um aglomerado infinito aberto em 2\mathbb{Z}^{2} e um aglomerado infinito fechado em 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast}. Os dois aglomerados não podem se tocar (lembre que os elos de 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} têm o mesmo status que os respectivos elos secantes de 2\mathbb{Z}^{2} — vide a demonstração da Proposição 1.2.2 na página 1.2.2) e 2\mathbb{Z}^{2} é pequeno demais para isto.

Para o segundo lema, a heurística é que em p<pcp<p_{c}, há apenas aglomerados abertos finitos (ilhas) em 2\mathbb{Z}^{2} num mar de elos fechados do dual. Presumivelmente estes formam um aglomerado infinito. Logo, 1ppc1-p\geq p_{c} sempre que p<pcp<p_{c}, o que implica no resultado do lema.

Prova do Lema 5.1

O argumento, não publicado, é de Y. Zhang. Usaremos o truque da raiz quadrada de Cox & Durrett (já usado no capítulo anterior na demonstração do Corolário 4.3): Se

A1,,AmA_{1},\ldots,A_{m}

forem eventos crescentes de mesma probabilidade então

1Pp(i=1mAi)=Pp(i=1mAic)[1Pp(A1)]m,1-P_{p}(\cup_{i=1}^{m}A_{i})=P_{p}(\cap_{i=1}^{m}A_{i}^{c})\geq[1-P_{p}(A_{1})% ]^{m},

onde a desigualdade é FKG. Logo

Pp(A1)1[1Pp(i=1mAi)]1/m.P_{p}(A_{1})\geq 1-[1-P_{p}(\cup_{i=1}^{m}A_{i})]^{1/m}.

Suponha que

θ(1/2)>0.\theta(1/2)>0. (5.1)

Seja AneA_{n}^{e} o evento de que algum sítio do lado esquerdo de Tn=[0,n]2T_{n}=[0,n]^{2} esteja num aglomerado aberto infinito de 2\mathbb{Z}^{2} sem usar outros sítios de TnT_{n}. Defina AndA_{n}^{d}, AncA_{n}^{c} e AnbA_{n}^{b} similarmente substituindo lado esquerdo por lado direito, lado de cima e lado de baixo, respectivamente.

Como conseqüência de (5.1)

P1/2(existir um aglomerado aberto infinito)=1P_{1/2}(\mbox{existir um aglomerado aberto infinito})=1

de onde concluimos que

P1/2(AneAndAncAnb)1P_{1/2}(A_{n}^{e}\cup A_{n}^{d}\cup A_{n}^{c}\cup A_{n}^{b})\to 1

quando n.n\to\infty.

Pelo truque da raiz quadrada,

P1/2(Anu)1P_{1/2}(A_{n}^{u})\to 1 (5.2)

quando nn\to\infty para u=e,d,c,bu=e,d,c,b.

Escolhamos NN tal que

P1/2(ANu)>7/8eP1/2(AN1u)>7/8P_{1/2}(A_{N}^{u})>7/8\quad\mbox{e}\quad P_{1/2}(A_{N-1}^{u})>7/8 (5.3)

para u=e,d,c,bu=e,d,c,b.

Na rede dual, sejam Ae(n)A_{\ast}^{e}(n) o evento de que algum sítio do lado esquerdo de Tn=[0,n1]+(1/2,1/2)T_{n}^{\ast}=[0,n-1]+(1/2,1/2) esteja num aglomerado fechado infinito de 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} sem usar outros sítios de TnT_{n}^{\ast} e Ad(n)A_{\ast}^{d}(n), Ac(n)A_{\ast}^{c}(n) e Ab(n)A_{\ast}^{b}(n) similarmente definidos substituindo lado esquerdo por lado direito, lado de cima e lado de baixo, respectivamente.

Temos

P1/2(Au(N))=P1/2(AN1u)>7/8.P_{1/2}(A_{\ast}^{u}(N))=P_{1/2}(A_{N-1}^{u})>7/8. (5.4)

Considere

A=ANeAndAc(N)Ab(N).A=A_{N}^{e}\cap A_{n}^{d}\cap A_{\ast}^{c}(N)\cap A_{\ast}^{b}(N).

Note que, em AA, se houver apenas um aglomerado infinito aberto em 2\mathbb{Z}^{2} e apenas um aglomerado infinito fechado em 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} então os caminhos abertos infinitos à esquerda e à direita de TNT_{N} devem se ligar por elos abertos por dentro de TNT_{N}^{\ast} pois por fora os caminhos infinitos fechados acima e abaixo de TNT_{N}^{\ast} bloqueiam a passagem. Similarmente, os caminhos infinitos fechados acima e abaixo de TNT_{N}^{\ast} devem se ligar por elos fechados por dentro de TNT_{N}. Mas neste caso, as ligações por dentro de TNT_{N} e TNT_{N}^{\ast} devem se cruzar, o que é impossível. Logo, em AA há dois aglomerados infinitos abertos disjuntos em 2\mathbb{Z}^{2} ou dois aglomerados infinitos fechados disjuntos em 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} (veja a Figura 5.1). Concluimos do Teorema 4.1 que

Pp(A)=0.P_{p}(A)=0. (5.5)
Os sítios
Figura 5.1: Os sítios aa e bb estão em aglomerados abertos infinitos de 2\TN\mathbb{Z}^{2}\backslash T_{N} e os sítios xx e yy estão em aglomerados fechados infinitos de 2\TN\mathbb{Z}^{2}_{\ast}\backslash T_{N}^{\ast}. Se houver um único aglomerado aberto infinito, então existe um caminho aberto π\pi ligando aa a bb, e então os aglomerados infinitos fechados em xx e yy são disjuntos.

Por outro lado

P1/2(Ac)\displaystyle P_{1/2}(A^{c}) \displaystyle\leq P1/2[(ANe)c]+P1/2[(And)c]+P1/2[(Ac(N))c]+P1/2[(Ab(N))c]\displaystyle P_{1/2}[(A_{N}^{e})^{c}]+P_{1/2}[(A_{n}^{d})^{c}]+P_{1/2}[(A_{% \ast}^{c}(N))^{c}]+P_{1/2}[(A_{\ast}^{b}(N))^{c}]
\displaystyle\leq 1/2\displaystyle 1/2

por (5.3) e (5.4).Logo, Pp(A)1/2P_{p}(A)\geq 1/2, em contradição com (5.5), o que prova o lema. \quad\triangle

Prova do Lema 5.2

Vamos mostrar que, se p<pcp<p_{c}, então existe um aglomerado fechado infinito no dual com probabilidade positiva, o que implica que 1ppc1-p\geq p_{c}, o que por sua vez produz o resultado do lema.

Se p<pcp<p_{c}, então do Corolário 3.1 temos que

χp=n=1Pp(|C|n)<.\chi_{p}=\sum_{n=1}^{\infty}P_{p}(|C|\geq n)<\infty. (5.6)

Seja MM um inteiro positivo e

AM\displaystyle A_{M} =\displaystyle\!\!= {Existe um caminho aberto π em 2 ligando algum sítio da forma\displaystyle\!\!\{\mbox{Existe um caminho aberto $\pi$ em $\mathbb{Z}^{2}$ % ligando algum sítio da forma}
(k,0)(k,0) com k<0k<0 a algum outro da forma (l,0)(l,0) com lMl\geq M com a
propriedade de que todos os elos de π\pi, a não ser os extremos,
estão acima do eixo horizontal}\displaystyle\,\,\mbox{estão acima do eixo horizontal}\}
Um esboço do evento
Figura 5.2: Um esboço do evento AMA_{M}

Então

Pp(AM)\displaystyle P_{p}(A_{M}) \displaystyle\leq Pp(l=M{(k,0)(l,0)para algumk<0})\displaystyle P_{p}\left(\bigcup_{l=M}^{\infty}\{(k,0)\leftrightarrow(l,0)\,\,% \mbox{para algum}\,\,k<0\}\right)
\displaystyle\leq l=MPp((k,0)(l,0)para algumk<0)\displaystyle\sum_{l=M}^{\infty}P_{p}((k,0)\leftrightarrow(l,0)\,\,\mbox{para % algum}\,\,k<0)
=\displaystyle= l=MPp((0,0)(kl,0)para algumk<0)\displaystyle\sum_{l=M}^{\infty}P_{p}((0,0)\leftrightarrow(k-l,0)\,\,\mbox{% para algum}\,\,k<0)
=\displaystyle= l=MPp((0,0)(l+m,0)para algumm>0)\displaystyle\sum_{l=M}^{\infty}P_{p}((0,0)\leftrightarrow(l+m,0)\,\,\mbox{% para algum}\,\,m>0)
\displaystyle\leq l=MPp(|C|l).\displaystyle\sum_{l=M}^{\infty}P_{p}(|C|\geq l).

(5.6) nos permite escolher MM tal que

Pp(AM)1/2.P_{p}(A_{M})\leq 1/2. (5.7)

Seja agora

L={(m+1/2,1/2):1m<M}.L=\{(m+1/2,1/2):-1\leq m<M\}.

Denote por C(L)C(L) o conjunto de sítios do dual conectados a LL por caminhos fechados do dual.

Se |C(L)|<|C(L)|<\infty, então existe um circuito aberto no dual de 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast}, isto é 2\mathbb{Z}^{2}, ao redor de C(L)C(L) (pela Proposição 5.1). Logo deve haver um caminho aberto em 2\mathbb{Z}^{2} ligando sítios do tipo (k,0)(k,0) com k<0k<0 e (l,0)(l,0) com lMl\geq M inteiramente no semiplano superior. Então

Pp(|C(L)|<)Pp(AM)1/2.P_{p}(|C(L)|<\infty)\leq P_{p}(A_{M})\leq 1/2. (5.8)

Portanto Pp(|C(L)|=)1/2P_{p}(|C(L)|=\infty)\geq 1/2. Mas então pelo menos um sítio de LL tem que estar num aglomerado fechado infinito. De onde se conclui que

Pp(0 está num aglomerado fechado infinito)\displaystyle P_{p}(\mbox{$0_{\ast}$ está num aglomerado fechado infinito}) \displaystyle\geq 1M+1Pp(|C(L)|=)\displaystyle\frac{1}{M+1}P_{p}(|C(L)|=\infty)
\displaystyle\geq 12(M+1)\displaystyle\frac{1}{2(M+1)}

e o lema está provado. \quad\triangle

A seguir apresentaremos uma outra prova do mesmo lema que tem um interessante subproduto.

Outra prova do Lema 5.2

Considere os seguintes conjuntos de sítios

Λn\displaystyle\Lambda_{n} =\displaystyle= {x2:0x1n+1, 0x2n}\displaystyle\{x\in\mathbb{Z}^{2}:0\leq x_{1}\leq n+1,\,0\leq x_{2}\leq n\}
Λn\displaystyle\Lambda_{n}^{\ast} =\displaystyle= {x+(1/2,1/2),x2:0x1n,1x2n},\displaystyle\{x+(1/2,1/2),\,x\in\mathbb{Z}^{2}:0\leq x_{1}\leq n,\,-1\leq x_{% 2}\leq n\},

os subgrafos

Sn=Λn\displaystyle S_{n}=\Lambda_{n} \displaystyle\cup {elos vizinhos mais próximos de Λn exceto\displaystyle\{\mbox{elos vizinhos mais próximos de $\Lambda_{n}$ exceto}
(x,y) com x1=y1=0 ou x1=y1=n+1}\displaystyle\quad\mbox{$(x,y)$ com $x_{1}=y_{1}=0$ ou $x_{1}=y_{1}=n+1$}\}
Sn=Λn\displaystyle S_{n}^{\ast}=\Lambda_{n}^{\ast} \displaystyle\cup {elos vizinhos mais próximos de Λn exceto\displaystyle\{\mbox{elos vizinhos mais próximos de $\Lambda_{n}^{\ast}$ exceto}
(x,y) com x2=y2=1 ou x2=y2=n}\displaystyle\quad\mbox{$(x,y)$ com $x_{2}=y_{2}=-1$ ou $x_{2}=y_{2}=n$}\}

e os eventos AnA_{n} de que existe um caminho aberto em SnS_{n} ligando seu lado esquerdo a seu lado direito e AnA_{n}^{\ast} de que existe um caminho fechado em SnS_{n}^{\ast} ligando seu lado de baixo a seu lado de cima.

 e seu dual
Figura 5.3: S5S_{5} e seu dual S5S_{5}^{\ast}

Temos que

AnAn=∅︀A_{n}\cap A_{n}^{\ast}=\emptyset (5.9)

pois senão haverá um cruzamento entre caminho aberto em SnS_{n} com caminho fechado de SnS_{n}^{\ast}, o que é impossível.

Por outro lado

AnAn=Ω.A_{n}\cup A_{n}^{\ast}=\Omega. (5.10)

De fato, suponha que AnA_{n} não ocorre. Seja DD o conjunto de sítios de SnS_{n} alcançados da face esquerda junto com os elos ligando tais sítios. Por uma variante da Proposição 5.1, existe um caminho em 2\mathbb{Z}^{2}_{\ast} cruzando SnS_{n}^{\ast} de cima a baixo secante apenas a elos de SnS_{n} contidos na fronteira de DD. Logo este caminho será fechado e AnA_{n}^{\ast} ocorre (veja Figura 5.4).

Ilustração do fato de que se não há caminhos abertos atravessando
Figura 5.4: Ilustração do fato de que se não há caminhos abertos atravessando SnS_{n} da esquerda para a direita, então há um caminho fechado cruzando SnS_{n}^{\ast} de cima para baixo.

De (5.9) e (5.10)

Pp(An)+Pp(An)=1.P_{p}(A_{n})+P_{p}(A_{n}^{\ast})=1. (5.11)

Mas Pp(An)=P1p(An)P_{p}(A_{n}^{\ast})=P_{1-p}(A_{n}). Logo

P1/2(An)=1/2P_{1/2}(A_{n})=1/2 (5.12)

(para todo nn).

Mas se pc>1/2p_{c}>1/2, então P1/2(An)0P_{1/2}(A_{n})\to 0 quando nn\to\infty (por uma variante do argumento que diz que Pp(EDn)0P_{p}(ED_{n})\to 0 quando nn\to\infty se p<pcp<p_{c} mencionado no capítulo anterior).

A contradição prova o lema. \quad\triangle

O subproduto interessante desta prova a que se aludiu acima é o fato de que P1/2(An)=1/2P_{1/2}(A_{n})=1/2 independentemente de nn. Pode-se argumentar (faça-o) como para EDnED_{n} que

Pp(An)0ou1P_{p}(A_{n})\to 0\quad\mbox{ou}\quad 1

quando nn\to\infty conforme p<pcp<p_{c} ou p>pcp>p_{c} respectivamente.