1.5. Conjuntos de Cantor

Seja I=[a,b]I=[a,b], a<ba<b, um intervalo fechado e limitado de comprimento positivo. Dado um escalar α>0\alpha>0, α<ba=|I|\alpha<b-a=|I|, consideramos o intervalo aberto JJ de comprimento α\alpha que possui o mesmo centro que II; denotamos então por λ(I,α;0)\lambda(I,\alpha;0) e λ(I,α;1)\lambda(I,\alpha;1) os dois intervalos remanescentes após remover JJ de II. Mais precisamente, sejam c=12(a+bα)c=\frac{1}{2}(a+b-\alpha) e d=12(a+b+α)d=\frac{1}{2}(a+b+\alpha), de modo que J=]c,d[J=\left]c,d\right[; definimos:

λ(I,α;0)=[a,c],λ(I,α;1)=[d,b].\lambda(I,\alpha;0)=[a,c],\quad\lambda(I,\alpha;1)=[d,b]. (1.5.1)

Note que a<c<d<ba<c<d<b, de modo que λ(I,α;0)\lambda(I,\alpha;0) e λ(I,α;1)\lambda(I,\alpha;1) são dois intervalos fechados e limitados disjuntos de comprimento positivo contidos em II; mais especificamente:

|λ(I,α;0)|=|λ(I,α;1)|=12(|I|α).\big{|}\lambda(I,\alpha;0)\big{|}=\big{|}\lambda(I,\alpha;1)\big{|}=\frac{1}{2% }\,(|I|-\alpha).

Dados um intervalo fechado e limitado II de comprimento positivo, um inteiro n1n\geq 1, escalares positivos α1\alpha_{1}, …, αn\alpha_{n} com i=1nαi<|I|\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}<|I| e ϵ1,,ϵn{0,1}\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n}\in\{0,1\}, vamos definir um intervalo limitado e fechado λ(I,(αi)i=1n;(ϵi)i=1n)\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n}\big{)} tal que:

|λ(I,(αi)i=1n;(ϵi)i=1n)|=12n(|I|i=1nαi)>0.\Big{|}\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n}\big{)}% \Big{|}=\frac{1}{2^{n}}\Big{(}|I|-\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}\Big{)}>0. (1.5.2)

A definição será feita recursivamente. Para n=1n=1, a definição já foi dada em (1.5.1). Dados um intervalo fechado e limitado II de comprimento positivo, escalares positivos α1\alpha_{1}, …, αn+1\alpha_{n+1} com i=1n+1αi<|I|\sum_{i=1}^{n+1}\alpha_{i}<|I| e ϵ1,,ϵn+1{0,1}\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n+1}\in\{0,1\}, definimos:

λ(I,(αi)i=1n+1;(ϵi)i=1n+1)=λ(λ(I,(αi)i=1n;(ϵi)i=1n),αn+12n;ϵn+1).\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n+1};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n+1}\big{)}=% \lambda\Big{(}\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n}% \big{)},\frac{\alpha_{n+1}}{2^{n}};\epsilon_{n+1}\Big{)}.

Assumindo (1.5.2), é fácil ver que λ(I,(αi)i=1n+1;(ϵi)i=1n+1)\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n+1};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n+1}\big{)} está bem definido e que:

|λ(I,(αi)i=1n+1;(ϵi)i=1n+1)|=12n+1(|I|i=1n+1αi)>0.\Big{|}\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n+1};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n+1}\big% {)}\Big{|}=\frac{1}{2^{n+1}}\Big{(}|I|-\sum_{i=1}^{n+1}\alpha_{i}\Big{)}>0.

Segue então por indução que temos uma família de intervalos fechados e limitados λ(I,(αi)i=1n;(ϵi)i=1n)\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{i=1}^{n};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n}\big{)} satisfazendo (1.5.2).

Fixemos então um intervalo fechado e limitado II de comprimento positivo e uma seqüência (αi)i1(\alpha_{i})_{i\geq 1} de escalares positivos tal que i=1αi|I|\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i}\leq|I|. Note que i=1nαi<|I|\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}<|I|, para todo n1n\geq 1. Para simplificar a notação, escrevemos:

I(ϵ)=I(ϵ1,,ϵn)=λ(I,(αi)i=1n;(ϵi)i=1n),I(\epsilon)=I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n})=\lambda\big{(}I,(\alpha_{i})_{% i=1}^{n};(\epsilon_{i})_{i=1}^{n}\big{)},

para todo n1n\geq 1 e todo ϵ=(ϵ1,,ϵn){0,1}n\epsilon=(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n})\in\{0,1\}^{n}. Dada uma seqüência (ϵi)i1(\epsilon_{i})_{i\geq 1} em {0,1}\{0,1\} obtemos uma seqüência decrescente de intervalos fechados e limitados:

II(ϵ1)I(ϵ1,ϵ2)I(ϵ1,,ϵn)I\supset I(\epsilon_{1})\supset I(\epsilon_{1},\epsilon_{2})\supset\cdots% \supset I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n})\supset\cdots (1.5.3)

Afirmamos que, para todo n1n\geq 1, os intervalos I(ϵ)I(\epsilon), ϵ{0,1}n\epsilon\in\{0,1\}^{n}, são dois a dois disjuntos. De fato, sejam dados ϵ,ϵ{0,1}n\epsilon,\epsilon^{\prime}\in\{0,1\}^{n}, com ϵϵ\epsilon\neq\epsilon^{\prime}. Seja k{1,,n}k\in\{1,\ldots,n\} o menor índice tal que ϵkϵk\epsilon_{k}\neq\epsilon^{\prime}_{k}. Temos I(ϵ)I(ϵ1,,ϵk)I(\epsilon)\subset I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{k}), I(ϵ)I(ϵ1,,ϵk)I(\epsilon^{\prime})\subset I(\epsilon^{\prime}_{1},\ldots,\epsilon^{\prime}_{% k}), J=I(ϵ1,,ϵk1)=I(ϵ1,,ϵk1)J=I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{k-1})=I(\epsilon^{\prime}_{1},\ldots,% \epsilon^{\prime}_{k-1}) e:

I(ϵ1,,ϵk)=λ(J,αk2k1;ϵk),I(ϵ1,,ϵk)=λ(J,αk2k1;ϵk).I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{k})=\lambda\Big{(}J,\frac{\alpha_{k}}{2^{k-1}}% ;\epsilon_{k}\Big{)},\quad I(\epsilon^{\prime}_{1},\ldots,\epsilon^{\prime}_{k% })=\lambda\Big{(}J,\frac{\alpha_{k}}{2^{k-1}};\epsilon^{\prime}_{k}\Big{)}.

Como ϵkϵk\epsilon_{k}\neq\epsilon^{\prime}_{k}, os intervalos λ(J,αk2k1;ϵk)\lambda\big{(}J,\frac{\alpha_{k}}{2^{k-1}};\epsilon_{k}\big{)} e λ(J,αk2k1;ϵk)\lambda\big{(}J,\frac{\alpha_{k}}{2^{k-1}};\epsilon^{\prime}_{k}\big{)} são disjuntos e portanto também I(ϵ)I(ϵ)=∅︀I(\epsilon)\cap I(\epsilon^{\prime})=\emptyset. Para cada n1n\geq 1 definimos:

Kn=ϵ{0,1}nI(ϵ).K_{n}=\!\!\!\bigcup_{\epsilon\in\{0,1\}^{n}}\!\!I(\epsilon).

Note que cada KnK_{n} é uma união disjunta de 2n2^{n} intervalos fechados e limitados de comprimento 12n(|I|i=1nαi)\frac{1}{2^{n}}\big{(}|I|-\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}\big{)}. Em particular, cada KnK_{n} é compacto e sua medida de Lebesgue é dada por:

𝔪(Kn)=|I|i=1nαi.\mathfrak{m}(K_{n})=|I|-\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}. (1.5.4)
1.5.1 Definição.

O conjunto K=n=1KnK=\bigcap_{n=1}^{\infty}K_{n} é chamado o conjunto de Cantor determinado pelo intervalo fechado e limitado II e pela seqüência (αi)i1(\alpha_{i})_{i\geq 1} de escalares positivos com i=1αi|I|\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i}\leq|I|.

Para cada seqüência (ϵi)i1(\epsilon_{i})_{i\geq 1} em {0,1}\{0,1\} temos que (1.5.3) é uma seqüência decrescente de intervalos fechados e limitados cujos comprimentos tendem a zero; de fato:

|I(ϵ1,,ϵn)|=12n(|I|i=1nαi)12n|I|n0.\big{|}I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n})\big{|}=\frac{1}{2^{n}}\Big{(}|I|-% \sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}\Big{)}\leq\frac{1}{2^{n}}\,|I|\xrightarrow[\;n\to% \infty\;]{}0. (1.5.5)

Pelo princípio dos intervalos encaixantes, existe exatamente um ponto pertencente à interseção de todos os intervalos em (1.5.3). Definimos então uma aplicação:

ϕ:{0,1}=i=1{0,1}ϵ=(ϵi)i1ϕ(ϵ)K,\phi:\{0,1\}^{\infty}=\prod_{i=1}^{\infty}\{0,1\}\ni\epsilon=(\epsilon_{i})_{i% \geq 1}\longmapsto\phi(\epsilon)\in K,

de modo que:

n=1I(ϵ1,,ϵn)={ϕ(ϵ)},\bigcap_{n=1}^{\infty}I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n})=\big{\{}\phi(% \epsilon)\big{\}}, (1.5.6)

para todo ϵ=(ϵi)i1{0,1}\epsilon=(\epsilon_{i})_{i\geq 1}\in\{0,1\}^{\infty}.

As principais propriedades do conjunto KK podem ser sumarizadas no seguinte:

1.5.2 Teorema.

Seja II um intervalo fechado e limitado de comprimento positivo e seja (αi)i1(\alpha_{i})_{i\geq 1} uma seqüência de escalares positivos tal que:

i=1αi|I|.\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i}\leq|I|.

Seja KK o conjunto de Cantor determinado por II e por (αi)i1(\alpha_{i})_{i\geq 1}. Então:

  • (a)

    KK é um subconjunto compacto de II;

  • (b)

    a medida de Lebesgue de KK é 𝔪(K)=|I|i=1αi\mathfrak{m}(K)=|I|-\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i};

  • (c)

    KK tem interior vazio;

  • (d)

    KK tem a mesma cardinalidade que a reta \mathds{R} (e é portanto não enumerável);

  • (e)

    KK não tem pontos isolados.

Demonstração.
  • \bullet

    Prova de (a).

    Basta observar que KK é uma interseção de subconjuntos compactos de II.

  • \bullet

    Prova de (b).

    Segue de (1.5.4) e do Lema 1.4.48, observando que KnKK_{n}\searrow K.

  • \bullet

    Prova de (c).

    Um intervalo contido em KnK_{n} deve estar contido em algum dos intervalos I(ϵ)I(\epsilon), ϵ{0,1}n\epsilon\in\{0,1\}^{n}, e portanto deve ter comprimento menor ou igual a 12n(|I|i=1nαi)\frac{1}{2^{n}}\big{(}|I|-\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}\big{)}. Segue de (1.5.5) que nenhum intervalo de comprimento positivo pode estar contido em KnK_{n} para todo n1n\geq 1. Logo K=n=1KnK=\bigcap_{n=1}^{\infty}K_{n} não pode conter um intervalo aberto não vazio.

  • \bullet

    Prova de (d).

    É fácil ver que a função ϕ\phi definida em (1.5.6) é bijetora. A conclusão segue do fato bem conhecido que {0,1}\{0,1\}^{\infty} tem a mesma cardinalidade de \mathds{R}.

  • \bullet

    Prova de (e).

    Seja xKx\in K. Como ϕ\phi é bijetora, existe ϵ{0,1}\epsilon\in\{0,1\}^{\infty} tal que x=ϕ(ϵ)x=\phi(\epsilon). Escolhendo ϵ{0,1}\epsilon^{\prime}\in\{0,1\}^{\infty} com ϵϵ\epsilon^{\prime}\neq\epsilon e (ϵ1,,ϵn)=(ϵ1,,ϵn)(\epsilon^{\prime}_{1},\ldots,\epsilon^{\prime}_{n})=(\epsilon_{1},\ldots,% \epsilon_{n}) então ϕ(ϵ)\phi(\epsilon^{\prime}) é um ponto de KK distinto de xx. Além do mais, ϕ(ϵ)\phi(\epsilon^{\prime}) e xx ambos pertencem ao intervalo I(ϵ1,,ϵn)I(\epsilon_{1},\ldots,\epsilon_{n}) e portanto:

    |xϕ(ϵ)||I(ϵ1,,ϵn)|=12n(|I|i=1nαi)12n|I|.\big{|}x-\phi(\epsilon^{\prime})\big{|}\leq\big{|}I(\epsilon_{1},\ldots,% \epsilon_{n})\big{|}=\frac{1}{2^{n}}\Big{(}|I|-\sum_{i=1}^{n}\alpha_{i}\Big{)}% \leq\frac{1}{2^{n}}\,|I|.

    Concluímos que toda vizinhança de xx contém um ponto de KK distinto de xx, i.e., xx é um ponto de acumulação de KK.∎

1.5.3 Exemplo.

Escolhendo os escalares αi\alpha_{i} com i=1αi=|I|\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i}=|I| então o conjunto de Cantor KK correspondente nos fornece um exemplo de um subconjunto não enumerável de \mathds{R} (com a mesma cardinalidade de \mathds{R}) e com medida de Lebesgue zero.

1.5.4 Exemplo.

Escolhendo os escalares αi\alpha_{i} com i=1αi<|I|\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i}<|I| então o conjunto de Cantor KK correspondente nos fornece um exemplo de um subconjunto compacto de \mathds{R} com interior vazio e medida de Lebesgue positiva. Na verdade, para todo ε>0\varepsilon>0 podemos escolher os escalares αi\alpha_{i} com i=1αi<ε\sum_{i=1}^{\infty}\alpha_{i}<\varepsilon e daí o conjunto de Cantor KK correspondente nos fornece um exemplo de um subconjunto compacto do intervalo II com interior vazio e 𝔪(K)>|I|ε\mathfrak{m}(K)>|I|-\varepsilon.