. Funções Mensuráveis
Recorde da Definição 1.4.42 que um espaço mensurável
é um conjunto do qual destacamos uma certa coleção de subconjuntos
(mais precisamente, uma -álgebra de partes de ) aos quais damos o nome de mensuráveis.
A palavra “mensurável” nesse contexto não indica que os conjuntos possam ser medidos de alguma
forma ou que estamos assumindo a existência de alguma medida não trivial definida em .
Um mesmo conjunto admite em geral diversas -álgebras; por exemplo,
e são sempre exemplos (triviais) de -álgebras de partes de . Portanto, o termo
“mensurável” só deve ser usado quando uma -álgebra específica
estiver fixada pelo contexto. No conjunto , temos dois exemplos importantes de -álgebras;
a -álgebra de Borel e a -álgebra de conjuntos
Lebesgue mensuráveis. No que segue, precisaremos também introduzir uma -álgebra de Borel
para a reta estendida ; temos a seguinte:
.
Um subconjunto é dito Boreleano quando for um Boreleano de .
É fácil ver que os subconjuntos Boreleanos de constituem de fato uma -álgebra de partes
de . Tal -álgebra será chamada a -álgebra de Borel
de e será denotada por .
A -álgebra de um espaço mensurável pode ser entendida
como uma estrutura que colocamos no conjunto subjacente (assim como, digamos,
as operações de um espaço vetorial constituem uma estrutura no conjunto subjacente).
Devemos então introduzir uma noção de função que preserva a estrutura de um espaço mensurável.
.
Sejam , espaços mensuráveis. Uma
função mensurável
é uma função tal que
para todo conjunto temos que pertence a .
Em outras palavras, uma função é mensurável se a imagem inversa de conjuntos mensuráveis é mensurável.
Quando as -álgebras em questão estiverem subentendidas pelo contexto,
nos referiremos apenas à mensurabilidade da função , omitindo a menção explícita
a e .
O conjunto aparecerá com muita freqüência como domínio ou contra-domínio de nossas funções
e introduzimos abaixo uma convenção que evita a necessidade de especificar a -álgebra
considerada em em cada situação.
.
A menos de menção explícita em contrário, o conjunto será considerado munido da -álgebra
de Borel sempre que o mesmo aparecer no contra-domínio de uma função; mais explicitamente,
se é um espaço mensurável então por uma função mensurável
entenderemos uma função tal que ,
para todo Boreleano . Similarmente, a reta estendida será
considerada munida da -álgebra de Borel , sempre que a mesma
aparecer no contra-domínio de uma função.
Por outro lado, o conjunto será sempre considerado munido da -álgebra
de conjuntos Lebesgue mensuráveis, quando o mesmo aparecer no domínio de uma função;
mais explicitamente, uma função mensurável é uma função
tal que , para todo .
Por exemplo, em vista da convenção 2.1.3 acima, uma função mensurável
é uma função tal que , para todo .
Nós dificilmente teremos qualquer interesse em considerar a -álgebra
em quando o mesmo aparece no contra-domínio de uma função; por outro lado, em algumas
situações é interessante considerar a -álgebra em quando o mesmo
aparece no domínio de uma função (contrariando, portanto, a convenção 2.1.3).
Introduzimos então a seguinte terminologia.
.
Seja um espaço mensurável. Uma função Borel mensurável
é uma função tal que
é uma função mensurável, i.e., tal que é um Boreleano de para todo .
Similarmente, uma função Borel mensurável é uma função
tal que
é uma função mensurável.
Para verificar a mensurabilidade de uma função não é necessário
verificar que para todo , mas apenas para
pertencente a um conjunto de geradores de . Esse é o conteúdo do seguinte:
.
Sejam , espaços mensuráveis e seja um conjunto de geradores
para a -álgebra . Uma função é mensurável se e somente se ,
para todo .
Demonstração.
Como , temos obviamente que para todo , caso
seja mensurável. Suponha então que para todo .
Verifica-se diretamente que a coleção:
(2.1.1)
é uma -álgebra de partes de . Por hipótese, (2.1.1)
contém e portanto contém .
Isso mostra que para todo , i.e., é mensurável.
∎
.
Se é um espaço mensurável então uma função é mensurável se e somente se
, para todo aberto .∎
.
Se é um espaço mensurável então uma função é mensurável se e somente se o conjunto:
está em para todo .
Demonstração.
Segue do Lema 2.1.5, tendo em mente o resultado do Exercício 1.25.
∎
.
Se é um espaço mensurável então uma função é mensurável se e somente se o conjunto:
está em para todo .
Demonstração.
Segue do Lema 2.1.5, tendo em mente o resultado do Exercício 2.5.
∎
.
A composta de duas funções mensuráveis é uma função mensurável, i.e., se , , são
espaços mensuráveis e se , são funções
mensuráveis então a função também é mensurável.
Demonstração.
Dado devemos verificar que . Mas ;
temos , pois é mensurável, e , pois é mensurável.
∎
É necessário cüidado na utilização do Lema 2.1.9; para concluir a mensurabilidade
de a partir da mensurabilidade de e de é necessário que a -álgebra
fixada para o contra-domínio de e para o domínio de sejam as mesmas. Em vista da convenção 2.1.3,
se e são funções mensuráveis então
não podemos usar o Lema 2.1.9 para concluir que é mensurável
já que adotamos a -álgebra de Borel para o contra-domínio de e a -álgebra
de conjuntos Lebesgue mensuráveis para o domínio de . Nós poderíamos utilizar o Lema 2.1.9
para concluir que é mensurável caso soubéssemos, por exemplo, que é mensurável e que é Borel mensurável.
Se é uma função definida num espaço mensurável então em muitas situações
é interessante considerar restrições de a subconjuntos de e gostaríamos que tais subconjuntos
de pudessem ser encarados como espaços mensuráveis. Dado então um subconjunto , definimos:
(2.1.2)
é fácil ver que é uma -álgebra de partes de
(veja Exercício 2.2).
.
Se é uma -álgebra de partes de um conjunto e se é um subconjunto de então
a -álgebra de partes de definida em (2.1.2) é chamada a -álgebra induzida em por .
Dizemos então que é um
subespaço
do espaço mensurável .
Observe que se é um espaço mensurável e se então os elementos da -álgebra
induzida são precisamente os elementos de que estão contidos em ; em símbolos:
Em outras palavras, se é mensurável então os subconjuntos mensuráveis do subespaço mensurável de são
precisamente os subconjuntos mensuráveis de que estão contidos em .
.
Se é um espaço mensurável e se é um subconjunto de então, a menos
de menção explícita em contrário, consideraremos sempre o conjunto munido da -álgebra
induzida .
Em vista das convenções 2.1.11 e 2.1.3, observamos que:
-
•
se um subconjunto de (resp., um subconjunto de ) aparece
no contra-domínio de uma função, consideramo-lo munido da -álgebra
induzida da -álgebra de Borel de (resp., da -álgebra
induzida da -álgebra de Borel de );
-
•
se um subconjunto de aparece no domínio de uma função, consideramo-lo munido
da -álgebra induzida da -álgebra de subconjuntos
Lebesgue mensuráveis de ;
-
•
se é um subconjunto de (resp., um subconjunto de ) e se
é um espaço mensurável então uma função é dita
Borel mensurável quando a função
(resp., a função ) for mensurável.
.
Sejam , espaços mensuráveis e um subconjunto. Então:
-
(a)
a aplicação inclusão é mensurável;
-
(b)
se é uma função mensurável então também é mensurável;
-
(c)
dada uma função com imagem contida em , se denota a função que difere de apenas
pelo contra-domínio então é mensurável se e somente se é mensurável.
Demonstração.
-
Basta observar que , para todo .
-
Basta observar que e usar o Lema 2.1.9 juntamente com o item (a) acima.
-
Se é mensurável então é mensurável, pelo Lema 2.1.9 e pelo item (a) acima.
Reciprocamente, suponha que é mensurável. Dado , devemos mostrar que
(que é igual a ) pertence a . Mas para algum e portanto,
como , temos .∎
.
Sejam , espaços mensuráveis e seja dada
uma cobertura enumerável de por conjuntos mensuráveis .
Então uma função é mensurável se e somente se
é mensurável para todo .
Demonstração.
Se é mensurável então é mensurável para todo , pelo Lema 2.1.12.
Reciprocamente, suponha que seja mensurável para todo . Dado ,
temos:
para todo .
Como , temos e portanto
, para todo . Como é enumerável segue que:
e portanto é uma função mensurável.
∎
.
Sejam um espaço mensurável e um subconjunto de . Uma função
é Borel mensurável se e somente se é Borel mensurável.
Demonstração.
Temos que , onde:
Segue do Lema 2.1.13 que é Borel mensurável se e somente se
suas restrições a e a são Borel mensuráveis.
Mas todos os quatro subconjuntos de são Boreleanos de e portanto
a -álgebra induzida por em
é . Em particular, a restrição de a é Borel mensurável,
seja qual for . A conclusão segue.
∎
.
Dado um subconjunto arbitrário , então toda função contínua
é Borel mensurável.
Demonstração.
Pelo Corolário 2.1.6, é suficiente mostrar que:
para todo aberto .
Mas, como é contínua, temos que é aberto relativamente a , i.e., existe
um aberto com:
daí e portanto .
∎
.
Seja um espaço mensurável e seja uma função com funções coordenadas
, . Então é mensurável se e somente se for mensurável,
para todo .
Demonstração.
Temos , onde denota a -ésima projeção. A função
é contínua e portanto Borel mensurável, pelo Lema 2.1.15; segue então do Lema 2.1.9
que a mensurabilidade de implica na mensurabilidade de cada .
Reciprocamente, suponha que cada é mensurável. Em vista do Lema 1.4.23, a -álgebra de Borel de
coincide com a -álgebra gerada pelos blocos retangulares -dimensionais. Segue então do Lema 2.1.5
que, para mostrar a mensurabilidade de , é suficiente mostrar que para todo bloco retangular
-dimensional . Se , então:
Como cada é mensurável, temos para todo e portanto
.
∎
.
Sejam , espaços mensuráveis e sejam , ,
funções mensuráveis. Dada uma função Borel mensurável
definida num subconjunto tal que:
para todo então a função:
é mensurável.
Demonstração.
Pelo Lema 2.1.16 e pelo item (c) do Lema 2.1.12 temos
que a função é mensurável. A conclusão segue do Lema 2.1.9.
∎
Se , são funções definidas num conjunto arbitrário então, como é usual,
definimos a soma
das funções e fazendo
, para todo ; para , podemos definir também
o produto
fazendo , para todo .
.
Seja um espaço mensurável. Dadas funções mensuráveis ,
então:
-
•
a soma é uma função mensurável;
-
•
se , o produto é uma função mensurável.
Demonstração.
As funções:
são contínuas e portanto Borel mensuráveis, pelo Lema 2.1.15. A conclusão
segue do Corolário 2.1.17.
∎
Note que para funções , a valores na reta estendida, também podemos
definir a soma ,
desde que a soma esteja bem definida (i.e., não seja da forma
ou ) para todo . O produto
pode ser definido sempre, sem nenhuma restrição sobre e .
.
Seja um espaço mensurável. Sejam dadas funções mensuráveis
e . Então:
-
•
se a soma estiver bem definida para todo então a função
é uma função mensurável;
-
•
o produto é uma função mensurável.
Demonstração.
Considere os seguintes subconjuntos de :
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todos eles pertencem a e sua união é igual a . A restrição de a cada um
deles é mensurável; de fato, a restrição de ao primeiro deles é mensurável pelo Corolário 2.1.18
e a restrição de aos outros é uma função constante (veja Exercício 2.1). Segue então do Lema 2.1.13
que é mensurável. A mensurabilidade de é mostrada de forma similar considerando
as restrições de aos conjuntos:
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.
Dado então a parte positiva e a parte negativa
de , denotadas respectivamente por e , são definidas por:
Se é uma função tomando valores em então a parte positiva
e a parte negativa
de , denotadas respectivamente por e ,
são definidas por e , para todo no domínio de .
É fácil ver que e , para todo ;
em particular, se é uma função tomando valores em então:
onde, obviamente, denota a função .
.
Seja um espaço mensurável. Se é uma função mensurável
então as funções , e também são mensuráveis.
Demonstração.
Segue do Lema 2.1.15 e do Corolário 2.1.14 que as funções:
são Borel mensuráveis; de fato, observe que suas restrições a são funções contínuas.
A conclusão segue do Lema 2.1.9.
∎
.
Seja um espaço mensurável e seja uma seqüência de funções
mensuráveis . Então as funções:
são mensuráveis.
Demonstração.
Note que para todo temos se e somente se
para todo ; logo:
para todo . Além do mais, para todo , temos
se e somente se para todo existe tal que ; logo:
para todo . A conclusão segue do Corolário 2.1.8.
∎
.
Seja um espaço mensurável e seja uma seqüência de funções
mensuráveis . Então as funções:
|
|
|
|
|
|
são mensuráveis.
Demonstração.
Basta observar que:
.
Seja um espaço mensurável e seja uma seqüência de funções
mensuráveis . Se para todo a seqüência
converge em então a função:
é mensurável.
Demonstração.
Basta observar que:
. Funções Simples
.
Uma função é dita simples quando sua imagem é um conjunto finito.
.
Seja um conjunto e sejam , funções simples.
-
•
se a soma estiver bem definida para todo então a função é simples;
-
•
o produto é uma função simples.
Demonstração.
A imagem de está contida no conjunto:
tal conjunto é obviamente finito. Similarmente, a imagem de está contida no conjunto finito
.
∎
.
Sejam um espaço mensurável e uma função simples.
Então é mensurável se e somente se para todo .
Demonstração.
Se é uma função mensurável então para todo , já que
é um Boreleano de . Reciprocamente, se para todo
então a mensurabilidade de segue do Lema 2.1.13, já que:
é uma cobertura finita de por conjuntos mensuráveis e a restrição de a cada conjunto
é mensurável (veja Exercício 2.1).
∎
.
Seja um conjunto e seja um subconjunto de . A função característica de ,
definida em , é a função definida por para e para .
Observe que a notação não deixa explícito qual seja o domínio da função característica de que está sendo considerada;
em geral, tal domínio deve ser deixado claro pelo contexto.
.
Se é um espaço mensurável e se é um subconjunto então a função característica
é uma função simples. Segue do Lema 2.1.27 que é uma função mensurável
se e somente se .
.
Se é um espaço mensurável então, dados e ,
temos que a função:
(2.1.3)
é simples e mensurável, desde que esteja bem definida (i.e., desde que não ocorra
com e ). De fato, isso segue da Proposição 2.1.19,
do Lema 2.1.26 e da Observação 2.1.29. Reciprocamente, se
é uma função simples e mensurável, podemos escrevê-la na forma (2.1.3), com
e , . De fato, basta tomar , onde , …, são os
elementos (distintos) do conjunto finito . Note que os conjuntos assim construídos
constituem uma partição de .
.
Sejam um espaço mensurável, uma função e .
Então:
-
(a)
é mensurável se e somente se é mensurável;
-
(b)
é simples se e somente se é simples.
Demonstração.
Temos , com ; além do mais,
e . Tendo em mente essas observações, o item (a) segue do Lema 2.1.13.
O item (b) segue da igualdade:
.
Seja uma seqüência de funções
e seja uma função, onde é um conjunto arbitrário. Escrevemos quando
para todo e todo e
para todo . Similarmente,
escrevemos quando
para todo e todo e para todo .
.
Sejam um espaço mensurável. Para toda função mensurável
existe uma seqüência
de funções simples e mensuráveis tal que .
Demonstração.
Para cada particionamos o intervalo em intervalos disjuntos
de comprimento ; mais explicitamente, consideramos os intervalos:
(2.1.4)
Para cada temos ou então pertence a exatamente um dos intervalos
(2.1.4); se definimos e, caso contrário,
tomamos como sendo a extremidade esquerda do intervalo da coleção (2.1.4)
ao qual pertence. Em símbolos, temos:
Temos então que é uma função simples e mensurável para todo (veja Observação 2.1.30). Note que:
(2.1.5)
para todo com . Afirmamos que . De fato, seja fixado.
Se então vale (2.1.5) para e portanto .
Se então para todo e portanto .
Para completar a demonstração, vamos mostrar agora que:
(2.1.6)
para todos e . Sejam e fixados.
Se , então e , donde (2.1.6) é satisfeita.
Senão, seja
o único inteiro tal que ; temos
. Seja o maior inteiro menor ou igual a ;
daí e portanto:
Se , segue que .
Caso contrário, se então e
. Em todo caso, a desigualdade (2.1.6)
é satisfeita.
∎