2.6. Riemann x Lebesgue
No que segue usaremos sistematicamente a terminologia e notação introduzidas nas Definições 1.3.1 e 1.3.2. Introduzimos mais alguma terminologia sobre partições e blocos.
2.6.1 Definição.
Seja um bloco retangular -dimensional tal que e seja uma partição do bloco . Uma partição de é dita um refinamento de se , para . A norma da partição , denotada por , é definida como o máximo dos diâmetros dos sub-blocos de determinados por .
Claramente se uma partição refina uma partição então todo sub-bloco de determinado por está contido em algum sub-bloco de determinado por .
No que segue, consideramos fixado um bloco retangular -dimensional com e uma função limitada .
2.6.2 Definição.
Se é uma partição de então a soma inferior de Riemann de com respeito a é definida por:
e a soma superior de Riemann de com respeito a é definida por:
Obviamente:
para toda partição de .
Nós consideramos as seguintes funções , associadas a uma partição de :
Mais explicitamente, dado , se pertence ao interior de algum sub-bloco de determinado por então o valor da função (resp., da função ) no ponto é igual ao ínfimo (resp., o supremo) de no bloco ; se pertence à fronteira de algum sub-bloco de determinado por então . Obviamente e são funções simples Lebesgue integráveis e:
já que , para todo (vide Corolário 1.4.8). Temos:
como a união das fronteiras dos blocos tem medida nula, segue que as desigualdades em (2.6.3) valem para quase todo . Se é uma partição de que refina então afirmamos que:
de fato, se , para algum bloco então está contido em algum bloco , donde e portanto:
2.6.3 Lema.
Dadas partições e de , se refina então:
Demonstração.
2.6.4 Corolário.
Para quaisquer partições e de temos:
Demonstração.
2.6.5 Definição.
A integral inferior de Riemann e a integral superior de Riemann de uma função limitada são definidas respectivamente por:
Quando a integral inferior e a integral superior de coincidem dizemos que é Riemann integrável e nesse caso a integral de Riemann de é definida por:
Note que o Corolário 2.6.4 implica que:
Vamos agora determinar condições necessárias e suficientes para que uma função seja Riemann integrável e vamos comparar a integral de Riemann de com a integral de Lebesgue de .
Consideraremos as funções , definidas por:
para todo . Claramente:
para todo .
Temos o seguinte:
2.6.6 Lema.
Dado então se e somente se é contínua no ponto .
Demonstração.
Suponha que é contínua no ponto . Dado então existe tal que , para todo com . Daí:
e portanto:
Como é arbitrário, segue que . Reciprocamente, suponha que ; daí, por (2.6.5), temos . Portanto, para todo , existem tais que:
Tome ; daí, para todo com , temos:
o que prova que é contínua no ponto . ∎
Se é uma partição de , observamos que:
de fato, basta observar que se pertence ao interior de um bloco então existe tal que a bola de centro e raio está contida em e portanto:
Além do mais, temos o seguinte:
2.6.7 Lema.
Se é uma seqüência de partições do bloco retangular tal que então q. s. e q. s..
Demonstração.
Seja a união das fronteiras de todos os sub-blocos de determinados por todas as partições ; como a quantidade de blocos em questão é enumerável, temos que tem medida nula. Seja , ; vamos mostrar que e . Seja dado . Temos que existem tais que:
Seja tal que , para todo . Vamos mostrar que:
para todo . Fixado , seja tal que pertence ao interior de . Como o diâmetro de é menor que , temos que está contido na bola de centro e raio e na bola de centro e raio , de modo que:
provando (2.6.7). Usando (2.6.6) e (2.6.7) concluímos agora que:
o que completa a demonstração. ∎
2.6.8 Corolário.
As funções e são Lebesgue integráveis e:
Demonstração.
Segue do Lema 2.6.7 e do resultado do item (c) do Exercício 2.8 que as funções e são mensuráveis. Seja agora uma seqüência de partições de tal que:
Podemos refinar cada partição de modo que ; o Lema 2.6.3 garante que a condição (2.6.8) continua satisfeita. Como o bloco tem medida finita, qualquer função constante finita definida em é integrável; logo, as desigualdades em (2.6.3) implicam que a seqüência de funções satisfaz as hipótese do Teorema da Convergência Dominada. Usando o Lema 2.6.7 e as identidades (2.6.2) obtemos então:
De modo totalmente análogo, mostra-se que a integral de Lebesgue de é igual à integral superior de Riemann de . ∎
Estamos em condições agora de provar o resultado principal desta seção.
2.6.9 Proposição.
Seja um bloco retangular -dimensional com e seja uma função limitada. Então:
-
(a)
é Riemann integrável se e somente se o conjunto das descontinuidades de tem medida nula;
-
(b)
se é Riemann integrável então é Lebesgue integrável e:
Demonstração.
Em vista do Corolário 2.6.8, é Riemann integrável se e somente se:
Como , o resultado do Exercício 2.22 implica que é Riemann integrável se e somente se quase sempre. O item (a) segue portanto do Lema 2.6.6. Passemos à demonstraçao do item (b). Suponha que é Riemann integrável. Então quase sempre e de (2.6.5) segue que quase sempre. O resultado do item (b) do Exercício 2.8 implica então que é mensurável; além do mais:
2.6.1. A integral imprópria de Riemann
Na Definição 2.6.5 introduzimos a noção de integral de Riemann para funções limitadas definidas em blocos retangulares. A noção de integral de Riemann pode ser estendida para contextos mais gerais, envolvendo funções não limitadas definidas em domínios não limitados. Tais extensões são normalmente conhecidas como integrais impróprias de Riemann e são definidas através de limites de integrais próprias (i.e., integrais de funções limitadas em conjuntos limitados).
2.6.10 Notação.
Seja um intervalo com . Se é uma função a valores reais definida num conjunto que contém e se é limitada e Riemann integrável então a integral de Riemann de será denotada por:
2.6.11 Definição.
Seja uma função tal que para todo , a restrição de ao intervalo é limitada e Riemann integrável. A integral imprópria de Riemann de é definida por:
desde que o limite acima exista em . Quando esse limite é finito, dizemos que a integral imprópria de é convergente.
2.6.12 Proposição.
Seja uma função tal que para todo , a restrição de ao intervalo é limitada e Riemann integrável. Então é mensurável. Além do mais, se é Lebesgue quase integrável então a integral imprópria de Riemann de existe em e:
Demonstração.
Seja uma seqüência arbitrária em tal que . Pela Proposição 2.6.9, a restrição de ao intervalo é Lebesgue integrável e:
para todo . Obviamente:
como é mensurável para todo , concluímos que é mensurável. Em vista de (2.6.10), para mostrar (2.6.9), é suficiente mostrar que:
para toda seqüência em com . Verifiquemos (2.6.11) primeiramente no caso em que é não negativa. Pelo Lema de Fatou, temos:
Por outro lado, para todo , donde:
provando (2.6.11) no caso . Em geral, se é uma função quase integrável qualquer então (2.6.11) é satisfeita para e , ou seja:
a conclusão é obtida subtraindo as duas igualdades acima. ∎
Resultados análogos aos da Proposição 2.6.12 podem ser mostrados para outros tipos de integrais impróprias de Riemann (por exemplo, integrais de funções ilimitadas em intervalos limitados). O passo central da demonstração de tais resultados é dado pelo resultado do Exercício 2.29. Note, por exemplo, que o resultado desse exercício pode ser usado para justificar a igualdade (2.6.11) na demonstração da Proposição 2.6.12.
2.6.13 Exemplo.
É possível que uma função admita uma integral imprópria de Riemann convergente mas não seja Lebesgue quase integrável. Considere a função definida por:
para e . Temos que é contínua e portanto é limitada e Riemann integrável para todo . Temos que se anula nos pontos , com inteiro positivo, é positiva nos intervalos da forma com inteiro positivo par e é negativa nos intervalos da forma com inteiro positivo ímpar. Para cada inteiro , seja:
Em vista do resultado do Exercício 2.14 temos:
Além do mais:
e portanto:
Façamos algumas estimativas sobre os números . Para , temos e portanto:
para todo . Segue que . Vamos mostrar que a seqüência é decrescente. Temos:
a segunda igualdade acima pode ser justificada fazendo a mudança de variável na integral de Riemann ou utilizando o resultado do Exercício 2.16 e o fato que a função preserva medida (veja Lema 1.4.10 e Definição 2.1). Como a seqüência é decrescente e tende a zero, segue do critério de Dirichlet (ou critério da série alternada) que a série converge; defina:
Vamos mostrar agora que:
Dado , temos que existe tal que:
para todo . Podemos escolher também de modo que:
para todo . Dado , , seja o maior inteiro tal que ; daí e:
Daí:
para todo . Isso prova (2.6.13). Concluímos então que:
Vamos agora mostrar que não é Lebesgue quase integrável. Para isso, fazemos uma estimativa inferior para os números . Dado um inteiro então, para temos:
e portanto:
Segue que as séries em (2.6.12) são divergentes e portanto:
Logo não é Lebesgue quase integrável.