9.3 O Teorema Fundamental do Cálculo

Suponha que se queira calcular a integral de uma função contínua f:[a,b]f:[a,b]\to\mathbb{R}:

Podemos supor sem perda de generalidade que f0f\geq 0, o que deve ajudar a entender geometricamente alguns dos raciocínios a seguir. Para calcular II passaremos pelo estudo de uma função auxiliar, chamada de função área, definida da seguinte maneira:

Isto é, I(x)I(x) representa a área debaixo do gráfico de ff, entre as retas verticais em aa (fixa) e em xx (móvel). Como ff é positiva, xI(x)x\mapsto I(x) é crescente. Além disso, I(a)=0I(a)=0, e a integral original procurada é I(b)II(b)\equiv I.

Exemplo 9.2.

Se f(x)=mxf(x)=mx, a função área pode ser calculada explicitamente:

Podemos observar que

I(x)=(12m(x2a2))=mxf(x)!I^{\prime}(x)=\bigl{(}\tfrac{1}{2}m(x^{2}-a^{2})\bigr{)}^{\prime}=mx\equiv f(x% )\,!
Exercício 9.5.

Calcule as funções área associadas às funções f:[0,1]f:[0,1]\to\mathbb{R} abaixo.

  1. 1.

    f(x)={0 se x12,1 se x>12.\displaystyle{f(x)=\begin{cases}0&\text{ se }x\leq\frac{1}{2}\,,\\ 1&\text{ se }x>\frac{1}{2}\,.\end{cases}}

  2. 2.

    f(x)=x+1f(x)=-x+1

  3. 3.

    f(x)=2x1f(x)=2x-1

A relação entre II e ff é surpreendentemente simples:

Teorema 9.2 (Teorema Fundamental do Cálculo).

Seja f:[a,b]f:[a,b]\to\mathbb{R} contínua. Então a função área I:[a,b]I:[a,b]\to\mathbb{R}, definida por I(x):=axf(t)𝑑tI(x){:=}\int_{a}^{x}f(t)dt é derivável em todo x(a,b)x\in(a,b), e a sua derivada é igual a ff:

I(x)=f(x).I^{\prime}(x)=f(x)\,. (9.8)

O seguinte desenho deve ajudar a entender a prova:

De fato, entre xx e x+hx+h, a função área II cresce de uma quantidade que pode ser aproximada, quando h>0h>0 é pequeno, pela área do retângulo pontilhado, cuja base é hh e altura f(x)f(x). Isso sugere

limh0+I(x+h)I(x)h=f(x).\lim_{h\to 0^{+}}\frac{I(x+h)-I(x)}{h}=f(x)\,. (9.9)
Demonstração.

Seja x(a,b)x\in(a,b). Provemos (9.9) (o limite h0h\to 0^{-} se trata da mesma maneira). Pela propriedade (3) da Proposição 9.1,

I(x+h)=ax+hf(t)𝑑t=axf(t)𝑑t+xx+hf(t)𝑑t=I(x)+xx+hf(t)𝑑t.I(x+h)=\int_{a}^{x+h}f(t)\,dt=\int_{a}^{x}f(t)\,dt+\int_{x}^{x+h}f(t)\,dt=I(x)% +\int_{x}^{x+h}f(t)\,dt\,.

Observe também que por (9.5), f(x)f(x) pode ser escrito como a diferença f(x)=1hf(x)xx+h𝑑t=1hxx+hf(x)𝑑tf(x)=\frac{1}{h}f(x)\int_{x}^{x+h}\,dt=\frac{1}{h}\int_{x}^{x+h}f(x)\,dt. Logo, (9.9) é equivalente a mostrar que

I(x+h)I(x)hf(x)=1hxx+h(f(t)f(x))𝑑t\frac{I(x+h)-I(x)}{h}-f(x)=\tfrac{1}{h}\int_{x}^{x+h}(f(t)-f(x))dt (9.10)

tende a zero quando h0h\to 0. Como ff é contínua em xx, sabemos que para todo ϵ>0\epsilon>0, ϵf(t)f(x)+ϵ-\epsilon\leq f(t)-f(x)\leq+\epsilon, desde que tt seja suficientemente perto de xx. Logo, para h>0h>0 suficientemente pequeno, a integral em (9.10) pode ser limitada por

ϵ=1hxx+h(ϵ)𝑑t1hxx+h(f(t)f(x))𝑑t1hxx+h(+ϵ)𝑑t=+ϵ.-\epsilon=\tfrac{1}{h}\int_{x}^{x+h}(-\epsilon)\,dt\leq\tfrac{1}{h}\int_{x}^{x% +h}(f(t)-f(x))dt\leq\tfrac{1}{h}\int_{x}^{x+h}(+\epsilon)\,dt=+\epsilon\,.

(Usamos (9.7).) Isso mostra que (9.10) fica arbitrariamente pequeno quando h0+h\to 0^{+}, o que prova (9.9). ∎

Assim, provamos que integral e derivada são duas noções intimamente ligadas, já que a função área é uma função derivável cuja derivada é igual a ff.

Definição 9.2.

Seja ff uma função. Se FF é uma função derivável tal que

F(x)=f(x)F^{\prime}(x)=f(x)

para todo xx, então FF é chamada primitiva de ff.

Exemplo 9.3.

Se f(x)=xf(x)=x, então F(x)=x22F(x)=\frac{x^{2}}{2} é primitiva de ff, já que

F(x)=(x22)=12(x2)=122x=x.F^{\prime}(x)=\bigl{(}\frac{x^{2}}{2}\bigr{)}^{\prime}=\tfrac{1}{2}(x^{2})^{% \prime}=\tfrac{1}{2}2x=x\,.

Observe que como (x22+1)=x(\frac{x^{2}}{2}+1)^{\prime}=x, G(x)=x22+1G(x)=\frac{x^{2}}{2}+1 é também primitiva de ff.

Exemplo 9.4.

Se f(x)=cosxf(x)=\cos x, então F(x)=senxF(x)=\operatorname{sen}x é primitiva de ff. Observe que G(x)=senx+14G(x)=\operatorname{sen}x+14 e H(x)=senx7H(x)=\operatorname{sen}x-7 também são primitivas de ff.

Os dois exemplos acima mostram que uma função admite infinitas primitivas, e que aparentemente duas primitivas de uma mesma função somente diferem por uma constante:

Lema 9.1.

Se FF e GG são duas primitivas de uma mesma função ff, então existe uma constante CC tal que F(x)G(x)=CF(x)-G(x)=C para todo xx.

Demonstração.

Defina m(x):=F(x)G(x)m(x){:=}F(x)-G(x). Como F(x)=f(x)F^{\prime}(x)=f(x) e G(x)=f(x)G^{\prime}(x)=f(x), temos m(x)=0m^{\prime}(x)=0 para todo xx. Considere dois pontos x1<x2x_{1}<x_{2} quaisquer. Aplicando o Corólário (6.1) a mm no intervalo [x1,x2][x_{1},x_{2}]: existe c[x1,x2]c\in[x_{1},x_{2}] tal que m(x2)m(x1)x2x1=m(c)\frac{m(x_{2})-m(x_{1})}{x_{2}-x_{1}}=m^{\prime}(c). Como m(c)=0m^{\prime}(c)=0, temos m(x2)=m(x1)m(x_{2})=m(x_{1}). Como isso pode ser feito para qualquer ponto x2<x1x_{2}<x_{1}, temos que mm toma o mesmo valor em qualquer ponto, o que implica que é uma função constante. ∎

Em geral, escreveremos uma primitiva genérica de f(x)f(x) como

F(x)=primitiva+C,F(x)=\text{primitiva}+C\,,

para indicar que é sempre possível adicionar uma constante CC arbitrária.

Exercício 9.6.

Ache as primitivas das funções abaixo.

  1. 1.

    2-2

  2. 2.

    xx

  3. 3.

    x2x^{2}

  4. 4.

    xnx^{n} (n1n\neq-1)

  5. 5.

    1+x\sqrt{1+x}

  6. 6.

    cosx\cos x

  7. 7.

    senx\operatorname{sen}x

  8. 8.

    cos(2x)\cos(2x)

  9. 9.

    exe^{x}

  10. 10.

    1ex1-e^{-x}

  11. 11.

    e2xe^{2x}

  12. 12.

    3xex23xe^{-x^{2}}

  13. 13.

    1x\frac{1}{\sqrt{x}}

  14. 14.

    1x\frac{1}{x}, x>0x>0

  15. 15.

    11+x2\frac{1}{1+x^{2}}

  16. 16.

    11x2\frac{1}{\sqrt{1-x^{2}}}

Exercício 9.7.

Mostre que (2x22x+1)e2x(2x^{2}-2x+1)e^{2x} é primitiva da função 4x2e2x4x^{2}e^{2x}.

Mais tarde olharemos de mais perto o problema de calcular primitivas. Voltemos agora ao nosso problema:

Teorema 9.3 (Teorema Fundamental do Cálculo).

Seja f:[a,b]f:[a,b]\to\mathbb{R} uma função contínua, e FF uma primitiva de ff. Então

abf(t)𝑑t=F(b)F(a)F(x)|ab.\int_{a}^{b}f(t)\,dt=F(b)-F(a)\equiv F(x)\big{|}_{a}^{b}\,. (9.11)
Demonstração.

Lembre que abf(t)𝑑t=I(b)\int_{a}^{b}f(t)\,dt=I(b), onde I(x)I(x) é a função área. Ora, sabemos pelo Teorema 9.2 que I(x)I(x) é primitiva de ff. Assim, I(x)=F(x)+CI(x)=F(x)+C, onde F(x)F(x) é uma primitiva qualquer de ff, e onde se trata de achar o valor de CC. Mas I(a)=0I(a)=0 implica F(a)+C=0F(a)+C=0, logo C=F(a)C=-F(a), e I(x)=F(x)F(a)I(x)=F(x)-F(a). Em particular, I(b)=F(b)F(a)I(b)=F(b)-F(a). ∎

Exemplo 9.5.

Considere I=01x2𝑑xI=\int_{0}^{1}x^{2}dx, que representa a área debaixo do gráfico da parábola y=f(x)=x2y=f(x)=x^{2}, entre x=0x=0 e x=1x=1. Como F(x)=x33F(x)=\frac{x^{3}}{3} é primitiva de ff, temos

01x2𝑑x=x33|01=133033=13.\int_{0}^{1}x^{2}\,dx=\frac{x^{3}}{3}\Big{|}_{0}^{1}=\frac{1^{3}}{3}-\frac{0^{% 3}}{3}=\frac{1}{3}\,.

Podemos também calcular a integral da introdução, dessa vez usando o Teorema Fundamental:

01(1x2)𝑑x=011𝑑x01x2𝑑x=113=23.\int_{0}^{1}(1-x^{2})\,dx=\int_{0}^{1}1\,dx-\int_{0}^{1}x^{2}\,dx=1-\tfrac{1}{% 3}=\tfrac{2}{3}\,.
Exercício 9.8.

Mostre que 02(x1)𝑑x=0\int_{0}^{2}(x-1)\,dx=0. Como interpretar esse resultado geometricamente?

Exercício 9.9.

A seguinte conta está certa? Justifique.

121x2𝑑x=(1x)|12=32.\int_{-1}^{2}\frac{1}{x^{2}}\,dx=\bigl{(}-\frac{1}{x}\bigr{)}\Big{|}_{-1}^{2}=% -\tfrac{3}{2}\,.

O Teorema Fundamental mostra que se uma primitiva de ff é conhecida, então a integral de ff em qualquer intervalo [c,d][c,d] pode ser obtida, calculando simplesmente F(d)F(c)F(d)-F(c). Isto é, o problema de calcular integral é reduzido ao de achar uma primitiva de ff. Ora, calcular uma primitiva é uma operação mais complexa do que calcular uma derivada. De fato, calcular uma derivada significa simplesmente aplicar mecanicamente as regras de derivação descritas no Capítulo 6, enquanto uma certa ingeniosidade pode ser necessária para achar uma primitiva, mesmo de uma função simples como 1+x2\sqrt{1+x^{2}} ou lnx\ln x.

Portanto, estudaremos técnicas para calcular primitivas, ao longo do capítulo. Por enquanto, vejamos primeiro como usar integrais para calcular áreas mais gerais do plano.