2.6 Espaços produto infinito

Nessa seção estudaremos Ω\Omega que são dados por produtos enumeráveis de outros espaços de probabilidade. Mas antes iremos recordar o Teorema da Extensão de Caratheodory.

2.6.1 Recordar é viver…

Vamos lembrar o enunciado do Teorema da Extensão de Caratheodory . Antes, vamos relembrar uma definição definição importante. Uma família 𝒢𝒫(Ω)\mathcal{G}\subseteq\mathcal{P}(\Omega) é dita uma álgebra de conjuntos se valem:

  1.  a)

    Ω𝒢\Omega\in\mathcal{G}.

  2.  b)

    Se A𝒢A\in\mathcal{G}, então Ac𝒢A^{c}\in\mathcal{G}.

  3.  c)

    Para todo n1n\geq 1, se A1,,An𝒢A_{1},\dots,A_{n}\in\mathcal{G}, então i=1nAi𝒢\bigcup_{i=1}^{n}A_{i}\in\mathcal{G}.

{theorem}

[Teorema da Extensão de Caratheodory] Seja 𝒢𝒫(Ω)\mathcal{G}\subseteq\mathcal{P}(\Omega) uma álgebra de conjuntos em Ω\Omega e suponha que μ:𝒢+\mu:\mathcal{G}\to\mathbb{R}_{+} satisfaça a seguinte propriedade: {display} Se (Ai)iI(A_{i})_{i\in I} e uma familia finita ou enumerável de elementos disjuntos de 𝒢\mathcal{G} tal que iIAi𝒢\cup_{i\in I}A_{i}\in\mathcal{G},
temos μ(iIAi)=iIμ(Ai)\mu(\cup_{i\in I}A_{i})=\sum_{i\in I}\mu(A_{i}). Então existe uma medida \widebarμ:σ(𝒢)+\widebar{\mu}:\sigma(\mathcal{G})\to\mathbb{R}_{+} tal que \widebarμ(A)=μ(A)\widebar{\mu}(A)=\mu(A) para todo A𝒢A\in\mathcal{G}.

Mostraremos agora uma consequência simples do teorema acima, que é muito utilizada em probabilidade.

{lemma}

[Extensão por continuidade no vazio] Seja 𝒢𝒫(Ω)\mathcal{G}\subseteq\mathcal{P}(\Omega) uma álgebra de conjuntos em Ω\Omega e suponha que P:𝒢+P:\mathcal{G}\to\mathbb{R}_{+} satisfaça as seguintes propriedades:

  1.  a)

    P(Ω)=1P(\Omega)=1,

  2.  b)

    PP é finitamente aditiva e

  3.  c)

    sempre que B1B2𝒢B_{1}\supseteq B_{2}\supseteq\dots\in\mathcal{G} forem tais que iBi=\cap_{i}B_{i}=\varnothing (denotamos isso por BiB_{i}\downarrow\varnothing), temos que limiμ(Bi)=0\lim_{i}\mu(B_{i})=0.

Então existe uma única medida \widebarP:σ(𝒢)+\widebar{P}:\sigma(\mathcal{G})\to\mathbb{R}_{+} tal que \widebarP(A)=P(A)\widebar{P}(A)=P(A) para A𝒢A\in\mathcal{G}.

Observe que P(Ω)=1P(\Omega)=1 somente é necessário para provar a unicidade de \widebarP\widebar{P}, então poderíamos tentar mostrar uma versão mais geral desse lema. Mas no contexto de medidas infinitas, não é de se esperar que BiB_{i}\downarrow\varnothing implique limiμ(Bi)=0\lim_{i}\mu(B_{i})=0, como foi assumido acima (veja também a Proposição 1.2). Portanto resolvemos escrever o enunciado com probabilidades.

{exercise}

Dê um exemplo de medida que não satisfaz a terceira hipótese do Lema 2.6.1.

Demonstração.

Primeiro observe que a unicidade segue da Proposição 1.3.1, já que 𝒢\mathcal{G} é um π\pi-sistema. Iremos agora mostrar que a propriedade (2.6.1) é válida para PP, logo tome A1,A2,𝒢A_{1},A_{2},\dots\in\mathcal{G} disjuntos e tais que A=iAi𝒢A=\cup_{i\in\mathbb{N}}A_{i}\in\mathcal{G}. Definimos o “resto da união” por

Bn=A\mcupi=1nAi.B_{n}=A\setminus\mcup_{i=1}^{n}A_{i}. (2.52)

Claramente

  1.  a)

    BnB_{n}\downarrow\varnothing e

  2.  b)

    Bn𝒢B_{n}\in\mathcal{G}, pois 𝒢\mathcal{G} é uma álgebra.

Logo podemos escrever AA como a união disjunta A=i=1nAiBnA=\bigcup_{i=1}^{n}A_{i}\cup B_{n} e já que PP é finitamente aditiva,

P(A)=i=1nP(Ai)+P(Bn),P(A)=\sum_{i=1}^{n}P(A_{i})+P(B_{n}), (2.53)

mas como limnP(Bn)=0\lim_{n\to\infty}P(B_{n})=0, temos

P(i=1Ai)=i=1P(Ai),P(\cup_{i=1}^{\infty}A_{i})=\sum_{i=1}^{\infty}P(A_{i}), (2.54)

mostrando a propriedade (2.6.1) e concluindo o teorema. ∎

2.6.2 Teorema da Extensão de Kolmogorov

O objetivo desta seção é provar um resultado que nos permitirá construir probabilidades em espaços produtos infinitos. Antes precisaremos de introduzir algumas notações. Dada uma coleção de espaços (Ei)i(E_{i})_{i\in\mathbb{N}}, definimos o espaço produto

Ω=i=1Ei={(ωi)i:ωiEi para todo i1}\Omega=\prod_{i=1}^{\infty}E_{i}=\big{\{}(\omega_{i})_{i\in\mathbb{N}}\,:\,% \omega_{i}\in E_{i}\text{ para todo $i\geq 1$}\big{\}} (2.55)

e os mapas Xi:ΩEiX_{i}:\Omega\to E_{i}, definidos para i=1,2,i=1,2,\dots por

Xi(ω1,ω2,)=ωi,X_{i}(\omega_{1},\omega_{2},\dots)=\omega_{i}, (2.56)

que chamamos de coordenadas canônicas associadas ao produto Ω\Omega.

Se cada EiE_{i} é dotado de uma σ\sigma-álgebra 𝒜i\mathcal{A}_{i}, então definimos

=σ((Xi)i1),\mathcal{F}=\sigma((X_{i})_{i\geq 1}), (2.57)

que é claramente uma σ\sigma-álgebra em Ω\Omega. Chamamos \mathcal{F} de σ\sigma-álbegra canônica.

{exercise}

Mostre que em (,)(\mathbb{R}^{\mathbb{N}},\mathcal{F}) temos que os conjuntos

  1.  a)

    A={lim infnXn{,}}A=\{\liminf_{n\to\infty}X_{n}\notin\{\infty,-\infty\}\},

  2.  b)

    B={limnXn=4}B=\{\lim_{n\to\infty}X_{n}=4\} e

  3.  c)

    C={limn1nXn existe}C=\{\lim_{n\to\infty}\tfrac{1}{n}X_{n}\text{ existe}\}

são todos mensuráveis (eventos) com respeito a \mathcal{F}. Além disso Y=\1Alim infnXnY=\1_{A}\liminf_{n\to\infty}X_{n} é uma variável aleatória em (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}).

{exercise}

Verifique as seguinte afirmações

  1.  a)

    =σ(A1××Ak×Ek+1×Ek+2×:k1,Ai𝒜i,ik)\mathcal{F}=\sigma\big{(}A_{1}\times\dots\times A_{k}\times E_{k+1}\times E_{k% +2}\times\dots\,:\,k\geq 1,A_{i}\in\mathcal{A}_{i},i\leq k\big{)}, os chamados eventos retangulares.

  2.  b)

    =σ(A×Ek+1×Ek+2×:k1,A𝒜i𝒜k)\mathcal{F}=\sigma\big{(}A\times E_{k+1}\times E_{k+2}\times\dots\,:\,k\geq 1,% A\in\mathcal{A}_{i}\otimes\dots\otimes\mathcal{A}_{k}\big{)}, conhecidos como eventos cilíndricos.

{definition}

Seja Ω=iIEi\Omega=\prod_{i\in I}E_{i} um espaço produto (infinito ou finito) dotado de uma probabilidade PP. Se XiX_{i} é uma coordenada canônica, então chamamos a probabilidade (Xi)P(X_{i})_{*}P de distribuição marginal de PP na coordenada ii.

{theorem}

[Extensão de Kolmogorov] Seja para cada n1n\geq 1 uma medida de probabilidade PnP_{n} em n\mathbb{R}^{n} tal que seja satisfeita a seguinte condição de compatibilidade

Pn+1(A×)=Pn(A), para todo A(n).P_{n+1}(A\times\mathbb{R})=P_{n}(A),\text{ para todo $A\in\mathcal{B}(\mathbb{% R}^{n})$}. (2.58)

Então existe uma única probabilidade PP no espaço produto infinito (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}) tal que P(A××)=Pn(A)P(A\times\mathbb{R}\times\dots)=P_{n}(A) para todo nn e todo boreliano AA de n\mathbb{R}^{n}.

Demonstração.

Considere a classe de conjuntos

𝒮l={\mcupj=1k[a1,j,b1,j)××[al,j,bl,j)l:ai,j{},bi,j{}}.\mathcal{S}_{l}=\Big{\{}\mcup_{j=1}^{k}[a_{1,j},b_{1,j})\times\dots\times[a_{l% ,j},b_{l,j})\subseteq\mathbb{R}^{l}\,:\,a_{i,j}\in\mathbb{R}\cup\{-\infty\},\ % b_{i,j}\in\mathbb{R}\cup\{\infty\}\Big{\}}.

Que é obviamente uma álgebra em l\mathbb{R}^{l} e seja também

𝒮={A××: onde l1 e A𝒮l}.\mathcal{S}=\big{\{}A\times\mathbb{R}\times\dots\,:\,\text{ onde }l\geq 1\text% { e }A\in\mathcal{S}_{l}\big{\}}. (2.59)

Claramente, 𝒮\mathcal{S} também é uma álgebra.

Se B=A××𝒮B=A\times\mathbb{R}\times\dots\in\mathcal{S} com A𝒮lA\in\mathcal{S}_{l} como acima, definimos

P(B)=Pl(A).P(B)=P_{l}(A). (2.60)

Note que por (2.58) essa definição independe da escolha de ll que usamos na definição de BB.

Gostaríamos agora de utilizar o Lemma 2.6.1. Para tanto, tome uma sequência encaixada B1B2𝒮B_{1}\supseteq B_{2}\supseteq\dots\in\mathcal{S} e, supondo que P(Bn)δ>0P(B_{n})\geq\delta>0 para todo n1n\geq 1, temos de mostrar que sua interseção não pode ser vazia.

Como Bn𝒮B_{n}\in\mathcal{S}, podemos escrever

Bn=An××, onde An𝒮ln e n1.B_{n}=A_{n}\times\mathbb{R}\times\dots,\text{ onde $A_{n}\in\mathcal{S}_{l_{n}% }$ e $n\geq 1$.} (2.61)

Podemos obviamente supor que

lnl_{n} são estritamente crescentes. (2.62)

A fim de obter um ponto na interseção de BnB_{n}, gostaríamos de aproximá-lo usando conjuntos compactos encaixados. Para tanto definimos os conjuntos

Cn=Cn××, com Cn𝒮lnC_{n}=C_{n}^{*}\times\mathbb{R}\times\dots,\text{ com $C_{n}^{*}\in\mathcal{S}% _{l_{n}}$} (2.63)

de forma que CnC_{n}^{*} seja compacto, CnAnC_{n}^{*}\subseteq A_{n} e

P(BnCn)δ2ln+1,P(B_{n}\setminus C_{n})\leq\frac{\delta}{2^{l_{n}+1}}, (2.64)

o que pode ser feito graças à continuidade de PlnP_{l_{n}}, que é uma probabilidade.

Temos ainda um problema, pois os conjuntos CnC_{n} não são encaixados, e isso nos impede de utilizar resultados sobre interseções de compactos. Introduzimos pois Dn=i=1nCiD_{n}=\bigcap_{i=1}^{n}C_{i}, que obviamente pertence à álgebra 𝒮\mathcal{S}, e estimamos

P(BnDn)=P(\mcupi=1n(BnCi))i=1nP(BnCi)δ2,P(B_{n}\setminus D_{n})=P\big{(}\mcup\nolimits_{i=1}^{n}(B_{n}\setminus C_{i})% \big{)}\leq\sum_{i=1}^{n}P(B_{n}\setminus C_{i})\leq\frac{\delta}{2}, (2.65)

donde P(Dn)=P(Bn)P(BnDn)δ/2P(D_{n})=P(B_{n})-P(B_{n}\setminus D_{n})\geq\delta/2. De forma que os DnD_{n} são encaixados e não vazios.

Nosso próximo obstáculo vem do fato de que os conjuntos DnD_{n} estão definidos em \mathbb{R}^{\mathbb{N}}, e gostaríamos de ter conjuntos em espaços de dimensão finita. Isso pode ser feito observando que podemos escrever Dn=Dn×××D_{n}=D_{n}^{*}\times\mathbb{R}\times\mathbb{R}\times\dots, onde Dn𝒮lnD_{n}^{*}\in\mathcal{S}_{l_{n}} e

Dn=Cn\mathclapcompacto\mcap(\mcapi=1n1Ci×lnli)fechado,D_{n}^{*}=\underbrace{C_{n}^{*}}_{\mathclap{\text{compacto}}}\mcap\underbrace{% \Big{(}\mcap_{i=1}^{n-1}C_{i}^{*}\times\mathbb{R}^{l_{n}-l_{i}}\Big{)}}_{\text% {fechado}}, (2.66)

de forma que os DnlnD_{n}^{*}\subseteq\mathbb{R}^{l_{n}} são compactos e não vazios.

Para cada n1n\geq 1 considere um ωnDn\omega^{n}\in D_{n}. Usando um argumento de diagonal de Cantor, podemos obter um ωΩ\omega\in\Omega e uma sub-sequência de ωnj\omega^{n_{j}} que convirja para ωΩ\omega\in\Omega coordenada a coordenada (observe que ωnjlnj\omega^{n_{j}}\in\mathbb{R}^{\smash{l_{n_{j}}}}). Para concluir a prova mostramos que ωn1Bn\omega\in\bigcap_{n\geq 1}B_{n}. Para isso e suficiente mostrar (lembramos que por definição CnBnC_{n}\subseteq B_{n}) que para todo nn\in\mathbb{N}

ω=(ω1,ω2,)Cn.\omega=(\omega_{1},\omega_{2},\dots)\in C_{n}.

O que e equivalente a (ω1,ω2,,ωn)Cn(\omega_{1},\omega_{2},\dots,\omega_{n})\in C^{*}_{n}, que vale por compacidade. ∎

Observe que usamos muito poucos atributos de \mathbb{R} na prova. Poderíamos na verdade substituir \mathbb{R} por um espaço métrico que satisfaça certas propriedades, como por exemplo a existência de uma álgebra cujos conjuntos possam ser aproximados por compactos. Contudo, decidimos não apresentar essa versão mais geral aqui porque muito em breve obteremos uma versão bem mais geral do Teorema de Kolmogorov usando apenas o resultado para \mathbb{R}.

{exercise}

Mostre que a hipótese (2.58) pode ser substituida por

Pn+1(I1×,×In×)=Pn(I1××In),P_{n+1}(I_{1}\times\dots,\times I_{n}\times\mathbb{R})=P_{n}(I_{1}\times\dots% \times I_{n}), (2.67)

para todo n1n\geq 1 e Ii=(,bi]I_{i}=(-\infty,b_{i}], onde bib_{i}\in\mathbb{R}, ini\leq n.

Um importante exemplo do uso deste teorema é o seguinte.

{example}

Se PiP_{i} são probabilidades em (,())(\mathbb{R},\mathcal{B}(\mathbb{R})), podemos definir n=i=1nPi\mathbb{P}_{n}=\bigotimes_{i=1}^{n}P_{i} (relembrando, n\mathbb{P}_{n} é a única distribuição em n\mathbb{R}^{n} tal que n(A1××An)=i=1nPi(Ai)\mathbb{P}_{n}(A_{1}\times\dots\times A_{n})=\prod_{i=1}^{n}P_{i}(A_{i})). Não é difícil verificar que essa lei satisfaz as equações de consistência (2.58). Desta forma, podemos construir uma única \mathbb{P} em \mathbb{R}^{\mathbb{N}} para os quais as coordenadas canônicas XiX_{i} são independentes e possuem distribuições marginais PiP_{i}. Denotamos nesse caso =i1Pi\mathbb{P}=\bigotimes_{i\geq 1}P_{i}.

Mais adiante no texto daremos outros exemplos bastante interessantes do uso do Teorema 2.6.2.

{exercise}

Mostre que se p>0p>0 e =i1\Ber(p)\mathbb{P}=\bigotimes_{i\geq 1}\Ber(p) em \mathbb{R}^{\mathbb{N}}, então

lim supnXn=1\limsup_{n\to\infty}X_{n}=1 quase certamente. (2.68)
{exercise}

Mostre que se =i1U[0,1]\mathbb{P}=\bigotimes_{i\geq 1}U_{[0,1]} em \mathbb{R}^{\mathbb{N}}, então

lim supnXn=1\limsup_{n\to\infty}X_{n}=1 quase certamente. (2.69)
{exercise}

Mostre que se =i1\Exp(i)\mathbb{P}=\bigotimes_{i\geq 1}\Exp(i) em \mathbb{R}^{\mathbb{N}}, então

lim supnXn<\limsup_{n\to\infty}X_{n}<\infty quase certamente. (2.70)